sexta-feira, 7 de maio de 2010

Comer, escrever, amar

Antes de sair, deixou um bilhete sobre o fogão:
Tem frango no forno. Falta temperar a salada. O arroz é de ontem. O beijo é de hoje.
Apanhou a bolsa, os livros.
Desceu as escadas correndo, tinha só quinze minutos.
No caminho, lembrou-se.
Faltou escrever que tinha uvas fresquinhas.
Pensou em ligar e deixar um recado na secretária eletrônica de casa.
Desistiu.
A Clarisse já anunciara um milhão de vezes: precisava parar com isso.
Essa mania de se preocupar se todos à volta estão nutridos, gordos, corados.
O marido encontraria as uvas ao abrir a geladeira, Clarisse teria dito.
E se não as encontrasse?
Se não as encontrasse é porque ele não estava com vontade de comer uvas, respondeu mentalmente pela terapeuta.
Estava indo bem nas sessões.
Guardou o celular na bolsa.
Orgulhosa.
O orgulho foi se dissolvendo aos poucos, deixando em seu lugar a dúvida.
Impossível separar feminino e alimento, concluiu.
Quem é que amamenta?
A divindade que toma conta da agricultura é uma deusa, e não um deus.
Ceres para os romanos, Deméter para os gregos, é mulher.
Não é homem.
Ela simboliza o materno, o nutritivo.
A palavra cereal vem daí.
Pegou o celular, Mas ele é tão distraído… Então é problema dele – pareceu ter ouvido a Clarisse, já brava, dizer.
Guardou o aparelho novamente na bolsa.
E sua mão ficou lá dentro, como que anexada a ele.
Todos os dias, ela escrevia bilhetes para o marido.
Instruções para a cozinha em geral.
Onde estava isso, como se preparava aquilo, quantos minutos no microondas.
Não se encontravam à noite.
Ela saía para a aula enquanto ele ainda não havia chegado do escritório.
E no dia seguinte, ao raiar do sol, a checagem: Jantou direitinho ontem?
Ela não estava, genuinamente, preocupada se o outro limpara o prato, se achara o bife à milanesa no tupperware.
Perguntar era um movimento automático, um instinto ancestral de amor e proteção à espécie, quase incontrolável.
Um mistério, contudo decifrável; tinha a Clarisse, que estava ajudando as coisas a ficarem mais claras.
Intervalo da primeira aula, o celular toca.
É o marido.
Com brutal naturalidade, ele dispara o míssil: O Bob está sem comida.
Onde fica a ração?
Ela pede um minuto aos colegas, afasta-se da roda, respira fundo.
Sente-se esmagada pela fome excruciante que o cachorro poderia ter sentido naqueles intermináveis instantes.
Declara-se incapaz de cuidar de outro ser vivo.
Clarisse, desta vez, não vem ao seu socorro.
Ela, então, chora.
E desliga.

Fonte: Fio da Meada

Um comentário:

Silmara Franco disse...

Oi, Jennyfer!
Obrigada por reproduzir meu texto aqui. E pela gentileza de dar crédito e link... Sinal de que você gostou, e eu fico feliz com isso.
Um beijo para você.
Silmara Franco
www.fiodameada.wordpress.com

Foi Um Prazer

Tô te mandando essa mensagem num minuto de coragem que eu tô tendo agora Talvez depois já seja tarde ou não queira mais falar sobre nós dois...