O Estado de S. Paulo, 1996.
Impossível não falar do Caio. Do Caio F. Do Caio Fernando de Abreu, morto domingo, depois de passar os últimos meses da sua vida na casa dos pais, em Porto Alegre, num bairro chamado Menino Deus, a cuidar de si e de rosas.
Todos sabíamos que ele ia acabar no Menino Deus. Mas não sabíamos quando. Há mais de um mês ele não escrevia mais suas crônicas no Caderno 2 de domingo. Os amigos, aqui de São Paulo, desconfiavam. Mas ninguém dizia nada. Onde andará Dulve Veiga, ou melhor, Caio Fernando?
Na sexta-feira passada fui ao jornal buscar as minhas cartas. Na caixinha, cinco ou seis para o Caio. Olhei os remetentes: todas mulheres. As mulheres adoravam o Caio. E os homens, como eu, e tantos amigos comuns, também. O Caio tinha cara de santo, de anjo, de Dom Quixote. Não foi a doença que o deixou tão magro. Quando ela chegou, ele já não tinha mais o que emagrecer.
Durante seis meses, em 87, eu, ele e a Lu Vullares ficamos trancados numa suite do Eldorado preparando uma novela para a Manchete, sob a tutela do Wilker. A novela nunca saiu. Mas a amizade se consolidou ali. Conversávamos muito mais que do trabalhávamos. Me lembro que um dia chegou uma carta de Londres dando conta da morte de um amigo dele. Aids. Caio perdeu o bom humor por uma semana. Mas depois se levantou, criou personagens engraçadíssimos para a novela.
Ninguém me avisou de nada. Hoje cedo (é segunda-feira, nove da manhã) acordei, peguei o jornal e estava lá, na primeira página. E um texto lindo da Lygia Fagundes Telles, amiga e companheira dele há tantos anos. Bateu fundo, muito fundo. Meu Menino Deus.
Já havia até discutido o teor da crônica de hoje com o Aluizio Maranhão. Era algo polêmico. Conversei com ele ontem de noite e ele não me disse nada sobre o Caio. Talvez ainda não soubesse.
Impossível não falar do Caio.
Quando ele esteve pela última vez em São Paulo convidou a mim e ao Reinaldo Esteves para uma esticada (depois do lançamento do livro dele) até um local gay chamado A Louca. E foi n'A Louca que eu o vi pela última vez. Conversamos um pouco numa mesa, tomando cerveja. Depois teve um show da Laura Finokiaro com todas aquelas luzes. No meio da neblina, da fumaça e dos spots, vi o Caio sair do salão e passar por mim pela última vez, iluminado de azul e vermelho, com uma névoa de gelo seco em torno da sua cabeça. Sumiu com um anjo sem trombeta. Sabia que nunca mais o veria.
Ele iria cuidar do jardim de Menino Deus.
Caio escreveu um dia sobre sua (e minha) amiga Ana C. Retruquei com uma crônica/crônica para ele, aqui neste espaço. Ele me mandou uma carta, a última:
"Pratinha querido, obrigado pela carta que você me escreveu. Pensei em responder pelo jornal mesmo - para dizer principalmente que acho você muito mais Ouro do que Prata - mas ia ser muita veadagem toda essa jogação pública de confetes, não?
Hoje gostei mais ainda ao ler que choveram anjos na sua horta depois da crônica. Adorei aquela história do diário da gestação. Anjo-da-guarda é papo quente. Se bem que alguns são meio vadios e nem sempre cumprem horário integral.
Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto 7, outro de sandália havaiana. É preciso ter muita paciência com este virus do cão. E fé em Deus. E falanges de anjos-da-guarda fazendo hora extra. E principlamente amigos como você e muitos outros, graças a Deus, que são melhores que AZT.
Que tudo esteja em paz com você. Dá um abraço no Reinaldo e em quem perguntar por mim.
Um beijo do seu velho
Caio F.!"
Onde andará Caio Fernando? Em Menino Deus, certamente. Eternamente.
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