sábado, 29 de janeiro de 2011

clandestinudez

Entre vários livros escolhi o de nome desconhecido. Não quis Voltaire, Gullar, Veríssimo. Eu quero apenas um livro de autor desconhecido. Comprei. Os olhos da cara, Companhia das Letras e a autora deve ser conhecida. Eu é que não a conheço. Sentei na sala de espera, que era mesmo um portão de embarque. Mas, para mim, não passava de uma sala de espera. Todo mundo esperando algo. E comecei a ler. Livro ruim, capa bonita, história repetida. Adultério, skype e uma combinação de pop rock e MPB. Eu quis morrer. Deveria ter escolhido o Gullar. Mas deixa. Nem sempre a gente faz a escolha certa. Eu vivo escolhendo errado e considero meus erros muito bem elaborados. Não me ferem mais. Levanto e vou ao café. Aos goles a surdina de minha saudade. Eu amava mesmo ou me enganava? Vai saber. Um dia você troca e-mails, no outro troca endereços e, mais rápido do que se pensa, já estão íntimos. Você e o outro. O outro é a cara na webcam. Ajusta a imagem, arruma os cabelos e sorri. E surgem as perguntas, a novidade, o amor em megapixels e sacanagem. Vamos nos ver? Tudo combinado feito peixe e aquário. Eu, assim como milhões, amei virtual. E, deste ponto em diante, senti medo de ver a pessoa. A carne. O osso. E eu vi. Paguei pra ver. Era um homem alto, de sotaque forte, pernas e pêlos e muitos hormônios. Parecíamos estar em algum filme do Corujão. Nada pode ser tão perfeito assim. Do virtual ao vento que refresca o rosto, estive com a outra parte de minhas noites. Era a madrugada inteira de conversa, e-mails enormes de vontade e, como manda o figurino, abracadabra: 3 anos de amor em Garamond. E era tudo tão perfeito, tão mão e luva, e eu queria estar ao seu lado não me importava como. Assustei-me. Obliquo à direita do verbo. O plano saiu do papel ou da tela do computador e eu fiz de tudo para estar ao lado da imagem que era tão bela na câmera e mais bela ainda na cama de solteiro de um quarto qualquer. Eu amei. Era tonta mulher de bossa nova. Amando de todo jeito, eu dei tanto presente e fiz tudo do meu jeito: Incompreensível. Éramos iguais. Mas, tal como a esposa que fuça a carteira do marido, remexi tua vida e deixei tudo de cabeça pra baixo. Um dia, lembro bem, consegui a senha de seu e-mail e li tantas coisas similares às coisas que me eram ditas por você. Até as cenas do próximo capítulo. Era tudo igual. Eu, a mula quadrada exposta ao ridículo, sofri recatada minha decepção. Porque eu realmente esperava que fosse inédita. Mas nunca fui. Eu era reprise. Você bem que disse que amava em excesso. Eu admito que li e-mails endereçados a outras mulheres como se fossem a mim escritos. Poemas do Neruda, de outros, de poetas latinos e algumas citações e tuas partes nuas em fotos de convites para sexo. Tremi ao ver tua nudez clandestina errando meus alvos. Mas fazer o quê? Penso que acreditei em demasia na fantasia que carrego desde a infância. Homem alado, bonito, apaixonado e querendo sem fim. Eu acreditava. Sonhava. Se ainda sonho? Sonho todas as noites. Acredito na paz mundial. Vez por outra, ainda choro bêbada de lembrança. Mas, de você, nada tenho a dizer. Fica o vazio da saudade em Ctrl-C + Ctrl-V e mantenho minhas revoltas em uma pasta guardada à senha para as horas de odiar você.


Disponível aqui ó.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Momentos...por Valhala.

Ligo-te.
Ouço-te.
Expressas a tua vontade de mim,
de nós.
Idênticos que somos.
Quero-te da mesma forma.
A distância,
maldita,
bendita,
terrível na impossibilidade,
incrível no desejo expresso.
Vem-te,
peço-te.
Descrevo o que te faria,
recordas o que te fiz.
Ouço a tua roupa,
a da cama,
mexes-te,
sei que mostras essa carne,
esse sexo...
Sentes-te.
O teu gemido,
recordo todos os momentos em que o provoquei.
Excitas-te,
endureço entre o teu respirar,
entre o teu gemido.
Falo-te,
obedeces,
fazes...
Sei que descobres esse sexo,
buscas o orgasmo,
lembras-te de nós,
entregue a mim,
à minha voz.
Anda,
vem-te para mim.
Endoidece-me mais um pouco.
Faz com que vá para ti,
percorra quilometros num segundo,
me deite
te prove,
te tenha.
Te provoque com o meu corpo,
com o meu sexo,
que me dê,
entregue,
venha também...
Quero-te,
desejo-te...
Preciso de ti,
de nós.
Em breve...


Disponível aqui ó.
Torça bem as lágrimas, uma a uma, até desencharcar o coração.
Depois, estenda a tristeza pra secar no varal da autogentileza.
Lá costuma bater sol.
Não são as catástrofes, assassinatos, mortes, doenças, que nos envelhecem e nos matam; é a forma como as pessoas olham e riem, e apressam os passos para os ônibus.

A maior declaração de amor.

Já ouvi palavras de ternura que foram capazes de me transportar aos lugares mais distantes, aos sentimentos mais profundos. Desta vez, elas vieram de quem não se esperava.

O convite era para passarmos o domingo no sítio de amigos de meus pais. Dada a completa falta de intimidade entre minha família urbanóide e assuntos ligados à fauna e à flora, imaginei que seria declinado. Engano. Domingo de manhã, a casa começou a se arrumar para ir ao tal churrasco na piscina: um programa alienígena para meus dez anos de vida. Maiôs, bóias, protetor solar – que, na época, era restrito ao Hipoglós e aplicado apenas no rosto dos mais branquelos como eu – e toda a parafernália que a circunstância exigia. Esperando pelo melhor, tratei de colocar na mala meu kichute preto de travas altas, que gostava de amarrar de dois jeitos diferentes: ou com o cadarço dando voltas no tornozelo, ou com o cadarço dando voltas na sola, entre as travas. Esta última me parecia a mais boleira e, por isso, era a preferida. Vai que no sítio tinha um campo de futebol, pensei. E, à revelia da matriarca, lá se foi o kichute para dentro da mala com os maiôs.

A primeira coisa que vi ao chegar foi um campo enorme, oficial, novinho. Meu coração disparou diante da expectativa de passar um dia inteiro jogando bola. De mãos dadas com meu pai, desci do carro para cumprir o protocolo infantil da chegada: beijinhos, apertos de bochecha, elogios a respeito de meu tamanho e referência a como meus olhos eram iguais aos de meu pai. O manual da criança educada exigia que eu sorrisse e ignorasse a dor que vinha do aperto em minhas bochechas. Tanto fazia, eu queria apenas correr para o campo.Atrás de mim, minhas irmãs, meu irmão caçula e a matriarca,que,mesmo fazendo força para esconder,desfilava sua prole orgulhosamente.

Depois de longos e dolorosos minutos, já com todos reunidos na piscina, alguém finalmente começou a organizar o jogo. Para meu completo desespero, notei que se tratava de um evento masculino – embora esse pequeno detalhe eu fosse capaz de tirar de letra, afinal, todo jogo de bola era um evento masculino naquela época – e adulto. A matriarca jamais me deixaria jogar com homens bem maiores do que eu, pensei. Antecipando o problema, corri para pedir que ela intercedesse a meu favor. Muito a contragosto, lá foi minha mãe falar com o rapaz. O momento era de tensão: o organizador, que devia ter 20anos, me olhava com uma expressão incrédula.Como tantos outros antes dele, pude intuir que temia pelo sucesso da pelada: colocar em campo uma menina poderia arruinar a brincadeira. Foi então que meu pai se juntou ao grupo e recebi autorização para colocar a chuteira. Como de costume, fui a última a ser escolhida. Você aprende a lidar com o preconceito bastante cedo na vida e eu sabia exatamente o que fazer naquela situação: jogar bola. Quando não esperam muito de você, fica fácil superar a expectativa.

Primeira de muitas
E foi assim que, em minutos, fiz dois gols, um deles chutando de longe, num movimento de pura inspiração, colocando a bola no que ficou em minha memória como sendo o ângulo superior esquerdo do goleiro, e dei vários dribles nos filhos dos amigos de meus pais. Quando saí do campo, vi meu pai me esperando. Ele me pegou pelo pescoço, como sempre fazia, dizendo que era assim que se pegavam gatinhos, abaixou e sussurrou ao pé de meu ouvido: “Bilu, você é o meu orgulho”. Foi assim que ouvi, pela primeira vez, a maior declaração de amor da minha vida. A partir desse dia, sem nenhum motivo aparente, meu pai repetia a frase, que virou a assinatura verbal de nossas conversas: antes de desligarmos o telefone ou quando eu ia até o seu quarto dar boa-noite.

A vida seguiu, meu pai desistiu, e eu conheci outras declarações de amor, também ditas ao pé do ouvido, e também capazes de fazer com que eu passasse mais forte pelo dia – mas a de meu pai nunca perdeu posição.

Anjo da guarda
No dia 11 de janeiro, Mel, minha sétima sobrinha, nasceu. Uma semana depois, deitada na cama de minha irmã, vendo-a amamentar cercada por seus outros três descendentes, lembrei do que me disse um astrólogo-espírita há dois anos: depois de perguntar se eu pretendia ter filhos e de me ouvir explicar que eu dificilmente os teria porque era gay e não via uma criança em minha vida, ele disse que era uma pena porque havia uma pequena alma esperando para nascer em mim, e que essa alma iria me acompanhar até o último dia, e cuidar de mim e me agasalhar e me alimentar espiritualmente.Repeti a ele que não pretendia mesmo ter filhos. Foi quando ele falou: ela vem de qualquer jeito, nem que seja em uma pessoa muito perto de você. Naquela hora, vendo Mel ser alimentada, contei a história a minha irmã e a meus sobrinhos, dizendo que não sabia se acreditava nela, mas que me parecia curiosa.

Todos riram, menos Paulo, o mais velho. Aos 15 anos, Paulo compartilha comigo da paixão pelo futebol e é meu fiel escudeiro.Juntos, jantamos fora, vamos aos mais variados estádios, vemos jogos na TV, falamos da vida. Carinhoso, não me poupa de abraços e beijos e cafunés.Ao me ouvir contar a história do astrólogo-espírita, levantou e, enquanto todos paparicavam o bebê, enxergando nele a tal alma-guia que iria me proteger, disse ao pé de meu ouvido: “Essa pessoa já chegou, e faz tempo. Essa pessoa que vai cuidar de você até o último dia sou eu”.

E foi assim, num domingo de janeiro de 2008, que a declaração de amor de meu pai passou a ser a segunda melhor que eu já ouvi na vida.
Uma vez conformado, uma vez feito o que outras pessoas fazem só porque fazem, e uma letargia infiltra-se em todos os nervos mais finos e faculdades da alma. Ela se torna todo o espetáculo externo e vazio interior; estúpida, rígida e indiferente.
O interesse na vida não está no que as pessoas fazem, nem em suas relações mútuas, mas principalmente no poder de comunicar-se com uma terceira parte, antagonista, enigmática, ainda que talvez persuasiva, o que alguns chamam de vida em geral.
Estou repleta de urgências para o amor, mas não foi preciso o desespero, você veio sem improviso e por inteiro, numa dessas esquinas, propícias para os encontros.
...remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto.
Minhas canelas finas me levaram até onde eu nem imaginava ir.
Se você não contar a verdade sobre si mesmo, não pode contar a verdade sobre as outras pessoas.
Você me pergunta: que que eu faço?
Não faça, eu digo.
Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a pobre.
Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso.
Pasme: acho que você é muito pouco religioso.
Mesmo.
Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus.
Que é isso?
Tá substituindo a maconha por Jesusinho?
Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você.
E você sabe disso.
O caminho é in, não off.
Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Pontuação adaptada.

Larbac

Não combinamos em nada.
Em quase nada.
Discordamos.
Em quase tudo.
Apesar disso
Eu gosto.
Eu gosto do teu rosto.
Eu gosto do teu gosto.
Tua boca, teu riso, teu corpo.
E gosto de gostar disso.
Você me dá.
Me dá vontades.
Prazeres.
Quereres.
Não há como explicar esse poder que tens.
De me fazer
Fazer qualquer coisa.
Ser qualquer uma.
E todas.
Querer sempre o mesmo.
E sempre.

02072010

Começo a sentir saudade de ti. Cuidar de crianças começa a deixar-me terna e nenhum de nós quer isso, não é? Afinal o que seria de nossa relação se repentinamente eu me tornasse uma pessoa meiga e passasse a vestir roupas rosa? Não, não seria eu como tu conheces. Gostaria de mim numa versão rosa, ou só essa forma negra te agrada? Digo, negra de humor, pois o meu caráter ainda tem cores amenas, mas isso por enquanto, e nem sei por quanto tempo.

Peguei-me pensando em como o ser humano desenvolve amizades. O que será que determina a vontade de aproximação que desenvolvemos e instiga-nos a querer tecer um relacionamento com alguém? No meu caso foi admiração. Primeiro por tua beleza - por acaso já mencionei que gosto de negros? A genética é tão generosa com vocês e em tantos aspectos... - e quando te conheci melhor passou a ser essencialmente pelo teu caráter e determinação pelo acerto. Embora erre algumas vezes, tens uma vontade genuína de ser correto; e isso, como já disse algumas vezes, é notável no mundo de hoje. Hoje, as pessoas não se importam muito com as outras e suas necessidades. Que mundo feio o nosso, não? Mas tu, meu querido, é como aquela andorinha da fábula... Tão disposto a tentar algo melhor e mais bonito para o mundo mesmo que tenha que começar agindo sozinho fazendo a pequena parte que te cabe. Sei que não preciso verbalizar isso, mesmo assim deixo aqui registrado que tens em mim uma amiga para tudo e para todo o sempre que, para nós aqui na terra, é tão breve e tão atribulado. Forever, meu amigo, Forever! E que neste caso, não tem relação alguma com Aloe Vera. Amo você!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Fazes-me falta!

Esta mensagem é para ti. Tem o teu nome, a tua morada… 
Fazes-me falta!
Pronto.
Disse.
Já está.
Não sei explicar porquê.
Esta alma age por impulso: sinto a tua falta, sinto falta do teu beijo, das tuas mãos, do teu corpo, do teu cheiro, de ti dentro de mim…
Não sei se te amo, tenho que ser sincera…
Mas não suporto a tua ausência, o teu silêncio…
Preciso provar-te novamente…
Quero o teu sorriso, o teu abraço, quero inclusive o que não vivi contigo…
Isto faz algum sentido?
Para mim não, mas Apecetes-me!!!
Hoje queria ter-te…
Sussurrar-te ao ouvido o que quero que faças (e onde)...
Trincar-te
Morder-te
Saborear-te.
Apeteces-me
E isso não faz qualquer sentido…

Disponível aqui ó.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Eu estava com um humor estranho, me achando velha demais: mas agora sou uma mulher de novo - como sempre sou quando escrevo.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Eu gostaria muito de ter o direito, eu também, de ser simples e muito fraca.

Eu já te disse?

Sabe do que eu gostava e nunca te falei?
Quando você saía do banho.
Você nunca conseguiu se secar direito.
Vinha pingando pelo quarto.
Cabelo displicentemente penteado, e completamente encharcado.
De calcinha, e escorrendo água por aquele corpo reto, sarado, lindo.
Aí, como se estivesse completamente seca, você deitava na cama, do meu lado.
Colada.
E me beijava com a boca doce, úmida, só minha.
Depois de um tempo, lembrava dos cachorros, e abaixava, de bruços, para recolhê-los para cima.
Enquanto fazia isso, me lançava um olhar que pedia aprovação.
Se eu não dissesse nada, você cantarolava alguma coisa, algumas daquelas músicas que você compunha para eles e me fazia rir muito, e lá vinham aqueles dois cachorros miúdos correr pela cama em volta de você. Eu só deixava, e isso eu nunca te falei, porque adorava a cara que você fazia.
Você ria como uma criança.
Uma criança que você é, e nunca vai deixar de ser.
E isso, talvez eu nunca tenha te dito, é das coisas mais bonitas que você tem.
Bonito porque, mesmo sendo tão pura e ingênua, você é madura, forte, determinada.
Você é tudo isso em uma só.
E o que me atraiu em você, numa tarde de verão californiano, foi exatamente essa mistura rara.
E isso, eu acho, nunca te disse.
Eu também nunca te disse que você foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, disse?
Disse que nunca antes tinha amado de um jeito tão forte, tão químico, tão sensível?
Que nunca tinha tremido de paixão como naquela noite que você me beijou no sofá da sala?
E em todas as seguintes.
Já te disse?
E eu já te disse que você me entendia como ninguém jamais me entendeu na cama?
Que eu nunca fui tão longe?
Que te ver sorrindo em cima de mim, só pra mim, talvez seja, até hoje, minha paisagem predileta?
Sabe do que mais eu gostava?
Quando você imitava o cara do desenho animado, o portuga.
Eu ia trabalhar lembrando da imitação e morria de rir, sozinha no carro.
Eu já te disse que te amei, entre tantas outras coisas, porque você me fazia rir?
Já te disse que hoje, quando a gente se encontra e consegue superar a dor para falar do passado, você ainda me faz rir assim?
Já te disse que lembrar da vida que eu tive do seu lado é meu passatempo predileto?
Que você me ensinou sobre as pessoas, sobre as verdades, sobre futebol, sobre política, sobre justiça, sobre como um prédio sai do chão e chega ao último andar, sobre a lógica da vida?
Já te contei como essas coisas mudaram a forma como eu vejo o mundo?
Já te disse como era bom ficar deitada no seu ombro?
De como eu me sentia segura?
De como eu gostava quando a gente via “cuickócuick” e de como a gente sacaneava, naquele jogo que vai ser para sempre só nosso, “Summerland”?
Já te disse que, até hoje, quando eu ouço a sua voz no telefone, meu coração palpita diferente?
Que a sua voz, as coisas que você me diz, o jeito que você diz, entram no meu ouvido da forma mais doce do mundo?
Que eu adorava quando você me abraçava no meio da noite?
Que eu chorava quando a gente fazia amor?
Já te disse que te ver chorar é como pegar uma faca bem afiada e ir passando ela devagarinho pela minha alma?
Que eu ainda sonho com você?
Com a gente lendo o jornal no chão da sala, tomando café, comendo as “especialidades” que você fazia para mim?
Já te disse que eu comecei a escrever este texto umas 300 vezes e nunca consegui terminar porque as lágrimas não deixavam?
Já te disse que as músicas que você compôs no violão são as mais bonitas que eu já escutei?
Que eu ouvia sozinha, escondida, quando você estava no trabalho, e elas me faziam chorar?
Já te disse que eu adorava quando a gente ia almoçar na casa dos seus pais e suas irmãs ficavam falando de como você era mal- humorada na infância?
Eu te olhava, ouvindo a mesa inteira falar de você, e via a mulher que só eu conhecia, que só eu amava daquele jeito tão fundo.
E sentia um orgulho enorme.
Aliás, e isso eu acho que eu já te disse, eu sinto tanto orgulho de você…
Tanto.
Eu queria ver o mundo com seus olhos de criança, chorar e deixar as lágrimas pularem, e não apenas escorrerem.
Queria ser indignada como você.
Inquieta como você.
Justa como você.
Bonita como você.
Intensa como você.
E sabe o que mais eu queria?
Ter tido um filho seu.
Porque eu queria que você se multiplicasse.
Acho que é disso que o mundo precisa.
Pessoas bonitas, fortes, inquietas, indignadas, questinadoras, inteligentes.
Como você.
Mas tem uma coisa que eu certamente nunca te disse.
Por que a gente se separou.
Sabe por que eu nunca te disse?
Porque eu nunca entendi.
Eu não sei o que te afastou de mim, o que me afastou de você.
O que eu sei é isto: eu sempre vou te amar.
Pelo que você é.
Pelo que você foi.
Pelo que você será.


Pontuação adaptada.
Não são as pessoas que são responsáveis pelo falhanço do casamento, é a própria instituição que é pervertida desde a origem.
Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.
Não pode haver duas opiniões sobre o que é um intelectual. É o homem ou mulher de inteligência puro-sangue que domina sua mente num galope pelo campo ao perseguir uma idéia.

Em seu último bilhete para o marido, Leonardo Woolf.

Querido,

Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.

V.
Eu vou te contar que você não me conhece…
E eu tenho que gritar isso, porque você está surdo e não me ouve!

A sedução me escraviza à você.
Ao fim de tudo você permanece comigo, mas preso ao que eu criei…
E não a mim.
E quanto mais falo sobre a verdade inteira, um abismo maior nos separa.

Você não tem um nome.
Eu tenho.
Você é um rosto na multidão e eu sou o centro das atenções.
Mas a mentira da aparência do que eu sou é a mentira da aparência que você é.
Porque eu não sou o meu nome e você não é ninguém.

O jogo perigoso que pratico aqui, ele busca chegar ao limite possível de aproximação, através da aceitação, da distância e do reconhecimento dela.

Entre eu e você existe a notícia que nos separa.
E eu quero que me veja a mim.
Eu me dispo da notícia.
E a minha nudez parada te denuncia e te espelha.
Eu me delato.
Tu me relatas.
Eu nos acuso.
E confesso por nós.
Assim, me livro das palavras…
Com as quais você me veste.


Não conheço a autoria do texto.

O Ofício de Viver

A arte de viver – dado que para viver é preciso fazer sofrer os outros (ver vida sexual, ver comércio, ver qualquer actividade) – consiste em habituarmo-nos a fazer todas as patifarias sem abalar o nosso equilíbrio interior. Ser capaz de todas as patifarias é a melhor bagagem que um homem pode possuir.

A Gaia Ciência

Um homem dirigiu-se a um santo, tendo nas mãos uma criança recém-nascida. “Que devo fazer com esta criança?”, perguntou ele, “ela é miserável, deformada e não tem vida bastante para morrer”. “Mate-a”, gritou o santo com voz terrível, “mate-a e segure-a nos braços por três dias e três noites, a fim de criar em si mesmo uma lembrança: – desse modo você não gerará novamente um filho quando não for tempo de fazê-lo”.” – Ouvindo isso, o homem partiu decepcionado; e muitos censuraram o santo por haver aconselhado uma crueldade, pois aconselhara matar a criança. “Mas não é mais cruel deixá-la viver?”, exclamou o santo.

O Vendedor de Passados

Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre, isto depois de o Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois são infelizes até que se separam. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Verbalizando [Texto completo]

- Meu Deus, mas como você me dói de vez em quando! [Caio F.]

Eu já nem quero te fazer entender, não. Cansei. Minha boca abre e fecha, e tudo o que teima em escapulir, eu acabo engolindo outra vez. Pode ter sido essa noite em claro, em meio ao frio, ao cinza, aos raios amarelos que eu esperei e não apareceram. Pode ter sido. Ou talvez seja apenas mais uma invenção minha. É, você sabe que eu crio situações por nós dois, resolvo, problematizo, e no final já nem existia nada. Vai ver eu acabe criando propositadamente, pra poder me envolver com qualquer coisa que não seja a verdade silenciosa que fica sussurrando em qualquer presença ou ausência nossa. E tudo isso me entorpece tão profundamente, sabe? Findo expulsando incoerências destrambelhadas porque eu queria mais era te ver - te ouvir, ler, que seja - berrando qualquer coisa. Uma manifestação. Um copo quebrado, um cheiro de vinho pela sala, ou qualquer reação vermelha que me fizesse levar à boca o dedo cortado. Acontece que eu espero, e as ranhuras se dão por dentro, de um jeito todo enigmático, sem pretensão tua, mas por convenção minha. Eu te chamo e não vem palavra. Te chamo, e não vem você. Acabo voltando, também. Recuo um passo ou dois, e fico observando com um olhar pervagante tudo o que se movimenta. Tento ser pedra, em vão. No fim eu sempre volto, sem a menor resistência, cantarolando uma bobagem qualquer, impregnada de você em todas as lembranças do futuro que não é. Somos errados, menino. De um jeito estúpido, eu penso em como seria se não houvéssemos acontecido. Eu queria expor todo o meu agora numa dessas minhas frases curtas. Queria fazer do sentimento algo claro, permitido, solto. Mas daí eu amarro tudo, e vou enovelando gestos secretos que muito provavelmente te fariam tropeçar, caso desenrolasse. E eu sei, ah, como eu sei!, que você se preserva de maneira igual. Existe sempre algo que fica. Mesmo que a gente decida ir embora, algo fica. Lembro meus momentos de surto, com tuas batidas de porta. Sempre me julguei tão calma e serena, que me surpreendo ao ficar de veneta nessas horas. Os pedidos para que você não ouse saber de mim, os adeus recheados de drama. E a amiga que me lembra que sou de peixes - e pra você isso não quer dizer nada. Mas me desenho besta. Teimosa. E agora, impulsiva. Impulsiva de um jeito que eu queria pegar o telefone e cantar com minha voz cor-de-rosa qualquer tom desafinado de All My Loving ao teu ouvido, porque ultimamente são os Beatles que passaram a virar desenho de qualquer momento nosso, no meu mundo. Mas eu não consigo, menino. Eu viro adolescente boba, que fica olhando de meia em meia hora pro celular, que checa o e-mail com uma vontade nada habitual, e que depois lembra de ter te pedido pra ir. Lembra que talvez fosse isso que você sempre quisesse ouvir. E lembra mais ainda, que se eu me propor, posso acabar me afeiçoando à ideia do não voltar. É que... Você não acha de uma tolice tão grande essas pequenezas que em nossas mãos se tornam graúdas? Aí eu fico te contando que somos crescidos. E você discorda. E eu fico em cólera. E você vai. E daí a queda d’água interna começa a despontar, em mim. Só em mim. Começa urgente, e depois fica mansa, miudinha, igual minha vontade de acordar. É que sempre sonho, menino. Sonho você sonhando comigo, eu dentro do teu sonho, você no meu, e depois... Depois eu só peço que nenhum de nós dois queira despertar. Tô falando muito, eu sei. Por nada, é verdade. Por um desenrolar exclusivamente meu diante da tua opção de mudez, que me dilacera imenso, ainda que o guardado seja insignificante. Ei. Não bate a porta, não. Porque tenho medo de trancá-la, e virar muro entre nós. Eu sei que sou tonta, dramática, chata, e ultimamente várias, dentro de uma só. Mas você não é nada fácil, também. Nos abraçamos assim, não foi? Isso é um ponto em comum. A verdade é que eu queria deitar no teu colo, com descuido e alguma pressa, e te contar tudo isso, em meio a um disparar de palavras ininteligíveis, que findasse com você me dizendo que não precisa dizer nada. É que eu não te esperava, não. E sei que você não me esperava também. Um desesperar, era? Eu queria não esperar nada. Seria mais fácil toda relação, se o não-esperar existisse, e fosse possível. Esperar, desesperar. E eu tive noção de que em meio a todo e qualquer desencontro, acabamos sendo conduzidos, você e eu, para o agora. Você é uma possibilidade minha, menino. Possibilidade não verbalizada. Como um sentimento sem nome, feito de uma palavra estranha. Palavra que nunca vai caber em dicionário nenhum, e que ninguém nunca vai inventar. Repetição? Sim. É que eu tento apagar, eu minto pra satisfazer tuas vontades, te pedindo pra não vir. Mas você fica. E vai sempre ficar. Continua existindo, musicado. O inevitável dança aos meus olhos. Aí chega a hora em que distribuo um segredo: o tudo que faltava, talvez seja você. Digo e vou dormir, sem sonho, mas dentro dele.

- É que você me dói, menino. Mas de um jeito assim, pulsando: tua poesia a correr em mim.

A Jaya mora aqui ó.
Obrigada pelo texto, Jaya!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Não que eu despreze você. Se eu pensasse em você, eu desprezaria.
Como disse Humphrey Bogart em Casablanca.
Não que eu queira lembrar ou esteja preso a algum passado.
Eu apenas apaguei você, como Jim Carrey em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.
Não que, mesmo esquecendo, eu ignore que você exista.
Eu apenas vi o seu rosto deformado, como Penélope Cruz viu o de Tom Cruise em Vanilla Sky (e você também viu o meu) e disse: Na outra vida, quando formos gatos – preferindo deixar para uma outra ocasião.
Ou encarnação.
Não que eu me orgulhe de ser assim. Eu apenas sou. E eu sei quem eu sou.
Como disse Mickey Rourke em Coração Satânico.
Não que você possa esperar só o pior de mim.
Mas é que eu adoro cheiro de *napalm ao amanhecer.
Como disse Robert Duvall em Apocalypse Now.
A grande questão é que a vida não é uma série, com continuação na semana seguinte.
A grande questão é que a vida é mais como um filme.
Começa pelos trailers termina nos créditos. As luzes se acendem. E, finalmente, quando todos vão embora, o faxineiro varre tudo, apaga as lâmpadas e tranca tudo.
Quando olhamos para trás, ao final, parece que foram apenas duas horas. Três, no máximo.
E the end.

*conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar.

Desonra

Para um homem de sua idade, cinqüenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campainha da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. "Sentiu saudade de mim?", ela pergunta. "Sinto saudade o tempo todo", ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor.

Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser seu pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze. Ele está na agenda dela faz mais de um ano; ele acha que ela é perfeitamente satisfatória. No deserto da semana, a quinta-feira passou a ser um oásis de luxe et volupté.

Na cama, Soraya não é efusiva. Seu temperamento, na verdade, é bastante sossegado, sossegado e dócil. Suas opiniões são surpreendentemente moralistas. Fica ofendida com as turistas que despem os seios ("tetas", ela diz) nas praias públicas; acha que os vagabundos deviam ser recolhidos e postos para trabalhar, varrendo as ruas. Ele não pergunta como ela consegue coadunar essas opiniões com o tipo de trabalho que faz.

Como tem prazer com ela, um prazer invariável, começa a nascer nele uma afeição por ela. Até certo ponto, ele acredita, essa afeição é correspondida. Afeição pode não ser amor, mas é ao menos prima-irmã do amor. Diante do começo pouco promissor que tiveram, até que têm sorte, os dois: ele porque a encontrou, ela porque o encontrou.

Ele tem consciência de que seus sentimentos são complacentes, até matrimoniais. Mesmo assim não renuncia a eles.

Por uma sessão de uma hora e meia paga-lhe quatrocentos rands, dos quais metade vai para a Discreet Escorts. É uma pena a Discreet Escorts cobrar tanto. Mas são donos do 113 e de outros apartamentos no Windsor Mansions; de certa forma são donos de Soraya também, dessa parte dela, dessa função.

Ele anda brincando com a idéia que pedissem para se encontrar no tempo livre dela. Gostaria que passassem uma noite juntos, talvez até a noite toda. Mas não a manhã seguinte. Ele se conhece bem demais para sujeitá-la à manhã seguinte, quando estará frio, ranzinza, impaciente para ficar sozinho.

É assim seu temperamento. Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo.

Obedeça seu temperamento. Não é uma filosofia, ele não atribuiria tal dignidade a esse sentimento. É uma regra, como a regra de são Benedito.

Ele está com boa saúde, com a cabeça clara. Por profissão ele é, ou foi, um acadêmico, e a vida acadêmica ainda ocupa, intermitentemente, o seu íntimo. Gosta de viver dentro de seus rendimentos, dentro de seu temperamento, dentro de seus meios emocionais. É feliz? Em termos gerais, é, acha que sim. Porém, não se esquece da última fala do coro de Édipo: Nenhum homem é feliz até morrer.

No campo do sexo, seu temperamento, embora intenso, nunca foi passional. Se tivesse de escolher um animal totem, seria a cobra. A relação sexual entre Soraya e ele deve ser, imagina, como uma cópula de cobras: prolongada, absorvente, mas um tanto abstrata, seca, mesmo no ponto mais quente.

O totem de Soraya seria a cobra também? Com outros homens, sem dúvida, ela é outra mulher: la donna è mobile. Porém, em termos de temperamento, sua afinidade com ele não pode de jeito nenhum ser fingida.

Embora seja uma libertina por profissão, ele confia nela, dentro de certos limites. Durante as sessões, ele fala com certa liberdade, às vezes até desabafa. Ela conhece os fatos da vida dele. Ouviu a história de seus dois casamentos, sabe de sua filha e dos altos e baixos da vida dela. Conhece muitas de suas opiniões.

Soraya nada revela de sua vida fora de Windsor Mansions. Soraya não é seu nome verdadeiro, com toda a certeza. Há indícios que deu à luz um filho, ou filhos. Pode até ser que ela não seja profissional coisa nenhuma. Talvez trabalhe para a agência só uma ou duas tardes por semana, e no resto do tempo viva uma vida respeitável nos subúrbios, em Rylands ou Athlone. Seria um pouco estranho para uma muçulmana, mas hoje em dia tudo é possível.

Sobre o próprio trabalho ele fala pouco, não quer aborrecê-la. Ganha a vida na Universidade Técnica do Cabo, antiga Fa-culdade da Universidade da Cidade do Cabo. Outrora professor de línguas modernas, ele passou a professor-adjunto de comunicações quando o Departamento de Línguas Clássicas e Modernas foi fechado como parte da grande reengenharia. Como to-dos os professores afetados pela racionalização, ele pode propor um curso especial por ano, independente do currículo, porque isso faz bem para o ânimo. Este ano, ele montou um curso sobre os poetas românticos. No mais, dá aulas em Comunicações 101, "Capacitação em Comunicações", e Comunicações 201, "Capacitação em Comunicações - Avançado".

Embora dedique diariamente horas e horas à nova disciplina, acha ridícula a primeira premissa constante da ementa de Comunicações 101: "A sociedade humana criou a linguagem para podermos comunicar nossos pensamentos, sentimentos e intenções". Sua opinião, que ele não ventila, é que a origem da fala está no canto, e as origens do canto na necessidade de preen-cher com som o vazio grande demais da alma humana.

Ao longo de uma carreira de um quarto de século, ele publicou três livros, nenhum dos quais provocou qualquer comoção, nem mesmo um abalo: o primeiro sobre ópera (Boito e a lenda do Fausto: a gênese de Mefistófeles), o segundo sobre a visão enquanto eros (A visão de Ricardo de São Vítor), o terceiro sobre Wordsworth e a história (Wordsworth e o peso do passado).

Nos últimos anos, tem brincado com a idéia de um trabalho sobre Byron. De início, pensou que seria um novo livro, outra obra crítica. Mas todas as tentativas de escrever atolaram no tédio. A verdade é que está cansado da crítica, cansado do discurso medido a metro. O que quer escrever é música: Byron na Itália, uma meditação sobre o amor entre os sexos na forma de uma ópera de câmara.

Enquanto enfrenta as aulas de comunicações, frases, me-lodias, fragmentos de canções da obra ainda não escrita flutuam por sua cabeça. Nunca foi um grande professor; nessa instituição de ensino transformada e, em sua opinião, emasculada, ele está mais deslocado do que nunca. Mas seus colegas de antigamente também estão na mesma, curvados pela formação inadequada para as tarefas que se meteram a cumprir; sacerdotes em uma era pós-religiosa.

Como não tem respeito pela matéria que ensina, não causa nenhuma impressão nos alunos. Não o olham quando ele fala, esquecem seu nome. Essa indiferença lhe dói mais do que admite. Mas cumpre ao pé da letra as obrigações com os alunos, com os pais deles, com o Estado. Mês após mês ele passa, recolhe, lê e anota seus trabalhos, corrigindo lapsos de pontuação, ortografia e concordância, questionando argumentações fracas, anexando a cada trabalho uma crítica breve e ponderada.

Ele continua ensinando porque é assim que ganha a vida; e também porque aprende a ser humilde, faz com que perceba o seu papel no mundo. A ironia não lhe escapa: aquele que vai ensinar acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não aprendem nada. É um aspecto de sua profissão que não comenta com Soraya. Ele duvida que exista uma ironia semelhante na vida dela.

Desonra

Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de menos. O que existe tem de estar em circulação, de forma que as pessoas possam ter a chance de ser felizes por um dia. [Pensamentos de David Lurie]

Rio, 13 de agosto de 1946.

Clarice querida,

Muito obrigado pelo seu cartão-postal de Berna. Espero que vocês se tenham dado bem aí: que não lhes aconteça o mesmo que ao Ribeiro Couto, de quem acabo de receber uma carta melancólica – tão melancólica e desanimada que me espantou. Parece que o poeta anda abafado com as sombras do Jura. Até voltou a poetar no estilo adolescente do Jardim das confidências.

Não me venha denegrir aquela viagem de ônibus para Copacabana. Você falou de si mesma e de literatura, mas fui eu que provoquei, porque me interessava conhecer o mecanismo de suas criações. Seu nome aparece freqüentemente nas críticas e crônicas literárias, citado a propósito de outros autores.

O mês passado tive que funcionar na Academia para fazer o discurso de saudação ao Peregrino Júnior. O imprudente falou durante uma hora e quarenta minutos, entregando-me um auditório sovado e sonolento. Mas o meu discurso foi uma brincadeira do princípio ao fim. A propósito dos trabalhos de biotipologia do Peregrino lancei em plena Academia a Nova – Gnomonia com seus parás, mozarlescos, quernianos, onésimos e dantas. Zombei do fardão e do lema “Ad immortalitatem”, com tanto jeito que fui depois sorridentemente felicitado até pelos acadêmicos mais enfatuados da glória acadêmica.

Escreva-me Clarice. Escreva carta. Um cartãozinho seu já é uma delícia. Mas eu quero a delícia maior das cartas. E fale de você. Fale muito de você. Nunca tenha medo de falar de você para mim.

Receba um abraço e as saudades de

Manuel

Nova York, 06 de julho de 1946.

Clarice,

Porisso (sic) não te posso mandar nenhuma palavra animadora. Digo apenas que não concordo com você quando você diz que faz arte apenas porque “tem um temperamento infeliz e doidinho”. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de nós todos, passou pela janela, na frente deles todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer — e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.

Fernando.

Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1953

Clarice,

Gostei de saber que você está com a alma mais sossegada. O sentimento de grandeza que você acha que está perdendo talvez agora é que você esteja adquirindo. Sua predisposição para ficar calada não é propriamente uma novidade: a novidade é estar aceitando, inclusive, o silêncio. É bom isso, dá mais paciência, mais compreensão, dá mais sentimento às coisas — e dá grandeza.

Fernando.

Quis trair você

É o prenúncio do fim, quando deixamos de seduzir um ao outro. Reativar nossa conexão também me fará sentir macho.

Senta aqui, Morena. Aconteceu uma coisa. Aquilo que acomete qualquer casal, mas que parecia jamais nos alcançar. Fui perseguido por aquele impulso espontâneo e independente de reflexão que nasce com todo homem, e também pela "girafa-loira-azeda", como apelidaste a única de minhas colegas que melindrou você. Aplausos pra sua intuição feminina, creio agora cegamente no seu bruxismo.

Sempre flertei esportivamente como um meio hábil de bolinar meu orgulho macho, manter flamada minha testosterona, apenas pela necessidade de sentir-me homem, o que de alguma forma inexplicável se dissipou com o tempo. Poderia jurar, não o tive como resolução de ano-novo. As conversas de boteco, onde a infidelidade é lugar-comum entre os integrantes, me baralhou o certo e o errado. Embora nada disso apoie um perdão.

Poderia até arrumar falsos álibis, corroborar que você também é culpada com sua despreocupação em assassinar as fomes sexuais que mal desconfio que tenhas. Mas nada disso seria justo ou até mesmo verdade. Quase fiz pois queria voltar à cena, me sentir pulsante, vai ver. Quase fiz pra me enquadrar na natureza masculina. Contudo, na hora não deu.

Era um cheiro novo. Bom, mas novo. Diferente, errante, pecaminoso, interdito, revitalizante. Eram linguajares aos quais não estava habituado, procedimentos de acobertação em falsete. Carro na esquina, olhar aflito pra todo lado, tesão à paisana, não saber como tratar uma mulher que não deseja além de sexo prático e desvalido, faminta por provar a si mesma da escassez de amor do mundo. Se fosse pra errar, teria de haver ao menos algum entusiasmo. Teria de ser bem feito, pra mim ou pra você.

É isso. Tive o tesão de fazer, armei a cena e dei pra trás. O que me impediu de seguir? A extinção fugaz de algumas coisas, talvez. Minha namorada deixaria de ser também minha melhor amiga, por exemplo. Realizei como seria lavarmos a louça juntos, como olhar as tonalidades de verão na sua retina num dia chuvoso e cinza, como encarar uma pergunta direta sobre isso, na lata. Vi toda nossa história até aqui fragmentada, levitando janela afora tal a Mary Poppins.

Tenho muito ainda por ser homem contigo, tenho dezenas de desejos ocultos a cavocar em você ao invés de expandir essa masculinidade entre paredes blasé e luz neon. Quero transar contigo, de qualquer jeito, ultrapassar suas próprias resistências, lutar contra seu cansaço, sua sujeira, suas dores, sua letargia, seu reumatismo sexual. Se for pra trair, quero fazê-lo com você mesma.

É o prenúncio do fim, quando a gente deixa de seduzir um ao outro dentro do namoro. Bem sei que reativar nossa conexão, saciar nossas virgindades, ser e fazer feliz em cima da nossa própria cama, te virar do avesso, igualmente me fará sentir macho quanto meus cupinchas de bar. Meu clube é dos crimes que compensam, Morena. Palavra de homem.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sou apaixonado por pesquisas estranhas, como as que avaliam o salto acrobático das pulgas entre cães e gatos. Não sei o que os cientistas vêm tomando – mas também quero. Perto deles, os escritores sofrem de bloqueio criativo.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Porra, Ana, porra!

A garota ligou o ar-condicionado a mais ou menos 25 graus e depois sentou-se na cama. Eu, ainda na porta como se fosse visita num motelzinho cuja conta seria bancada por mim. Ela tirou os sapatos pretos e espreguiçou o pé 37. Tem uns pés adornados e bem lixados, dedos médios e o mindinho é deveras uma graça. E isso denota um certo amadurecimento feminino. Ali, estacado feito um dois de paus, agradeço ao cosmos pela oferenda, inalando lascivamente o aroma do momento.

Ela até massageia um pouco os pés e me olha forçando uma sensualidade dispensável. Já tava tudo ali, no moreno dourado da pele ibérica. Pra quê mais? Ela quebra a cabeça um pouco pra direita e metaforicamente se despe com as sobrancelhas em sobressalto. Lança-me o tipo de olhar que faz qualquer um sentir-se um reprodutor de pedigree. E agora?

Sexo é uma coisa louca, especialmente pra mim. Na maioria das vezes, ao invés de aproveitar o momento, penso se estou sendo adequado e conveniente. Mas acho que é justamente o contrário que se espera de um coito. É hora de transgredir. Vai logo, penso comigo.

Eu vou. Eu sigo o roteiro que os livros de biologia me ensinaram. Ensaio uns passos pornográficos. Uso a língua e alguns dedos de cada vez. Beijo os lugares socialmente aceitáveis. Me sinto tão animalesco quanto um pônei. Bato alguns dentes, me enrolo com o sutiã de triplo feichecler, viro ela pro lado errado, pergunto se estou machucando depois de dobrá-la feito uma mesinha de acampamento.

As coisas não parecem bem e quando a transa toma esse rumo, começo a receber reprimendas de personagens não convidados, pensamentos irrelevantes me assaltam, suo feito um leitão prestes a ser abatido. Por isso sinto tanta falta de Ana e ao mesmo tempo uma estranha raiva. Com Ana eu sabia ser alguém nu sem esses relampejos impróprios sobre coisas que não tem a ver com a vontade do meu pau. Com Ana as coisas simplesmente rolavam. Agora, aqui com essa ou qualquer outra garota, meu cérebro parece programado pra me sabotar.

Uma morena jambo está nua e de bruços, com as luzes indiretas e amareladas da rua iluminando aquela região onde a linha das nádegas e a parte traseira das coxas se encontram formando a meta de vida de todos os homens acordados do mundo e até alguns que ainda estão dormindo. Mas por que, deus meu, por que só consigo pensar em pôneis, leitões, relâmpagos e de repente "Mãe, o que você faz aqui? Pare de olhar minha bunda branca". Sabes? Porra, Ana!

Faça isso logo, acabe com isso de uma vez. Então eu visito na companhia do meu áspero paladar os lugares mais inusitados e sombrios daquelas curvas gostosas com um abreviado perfume de jasmim misturado ao cheiro cru de uma mulher eriçada de tesão e sem coração.

"One-night stands" é algo que não acontece com frequência com caras como eu, porém se dá mais que cometas. Eu deveria ser todo êxtase. Eu podia sentir a agitação prévia do meu gozo e meus espermatozoides mobilizados pro Grande Dia, fazendo alongamentos com micro roupas de lycra branca e uns chapeuzinhos de nadador, a conversação e os burburinhos da galera ávida pelo tiro que os liberaria pra sempre de minha uretra.

Contudo, sinto decepcioná-los, amiguinhos. Não havia o menor sinal da rijeza necessária ou aceitável. Pensei em tudo e esqueci do principal: desligar meus neurotransmissores dos registros feitos na época em que Ana era o objeto de desejo e ternura de todo o meu organismo.

Meu corpo integralmente começou a cruzar informações, comparar sentidos, as digitais não batiam, o cheiro também não, a tez muito menos e o identificador de voz, que eu nem sabia que existia no meu organograma sistêmico, fechou todas as portas, arruinando minha vingança sexual.

Ana me abraçou por trás, me puxando pelos ombros, desesperadamente me impedindo de conferir meus carinhos e ereções a outra mulher que não ela. Então, como um sertanejo abandonado por deus no meio da caatinga, eu lamentei mil vezes, babando naqueles peitos molengas e agudos, gritando internamente, sem parar - Porra, Ana, porra!


Disponível aqui ó.
Estes são meus princípios.
Se você não gosta deles,
tenho outros!

Se a senhora está casada com o mesmo homem há 31 anos,
ele já não deve ser o mesmo homem.
Política não forma estranhos parceiros de cama.
Casamento sim.
Nunca esqueço um rosto,
mas no seu caso vou abrir uma exceção.

Enquanto Espero [Ney Matogrosso]

Enquanto espero acontecer
Enquanto espero ver no cais
Vou derramando sem querer
A febre dos meus ais

Há muito tempo amor
Que trago dor
Dentro do peito
Há muito tempo
A cor da solidão
Tingiu-me o leito
Há tanto tempo assim
Só eu dentro de mim
A procurar por nós
E apenas uma voz

Responde
Estão agora o vazio
E a saudade a sós
Há muito tempo amor
Que eu te sufoco
Em pensamento

Mas quando a noite cai
Traz tua imagem
Como um vento
Faz tanto frio aqui
Só eu dentro de mim
A procurar por nós
E apenas uma voz

Responde
Estão agora o vazio
E a saudade a sós
Navego um mar de fado azul
Angústia de um bolero
Versado em sombras meia luz
Soluço no meu canto
Uma canção enquanto espero
Enquanto espero acontecer
Enquanto espero ver no cais.


Cantada por Ney Matogrosso.

Mulher em chamas

Um dia tão bonito, o sol radioso, melhor gozá-lo na praia. A sogra sugeriu que a filha dirigisse, muito distraído ele, avançava sinal, invadia a contramão.

- Não admito – protestou João. – Na minha casa quem manda sou eu.

As crianças rebolaram na areia, os dois boiavam na tranqüila água verde – essa pança é uma vergonha, João! – e, casados havia sete anos, mergulhavam de olho aberto para se beijarem debaixo d’água. Uma delícia o empadão de palmito e galinha com farofa, aos grandes goles de cerveja bem gelada. À sombra do carro amarelo cochilavam – um marulhinho em surdina na barriga, a comichão da água salgada na pele branca -, ofuscados pelo imenso bicho ofegante, a língua de espuma fervendo na areia.

- Olhe um avião – o grito de susto da moça, o braço estendido. – Um avião caiu no mar!

O grande avião dourado precipitava-se em chamas na piscina azul.

- Desculpe, meu bem.

Sonho ou miragem? Nada de avião, uma simples gaivota. Do mormaço ou dos copos de cerveja, João queixou-se da cabeça, com pressa de voltar. O sol faiscava no espelho sem ondas, ardia no brasido da areia, reverberava na nuvem branca sobre o asfalto.

Uma gota de suor escorria na longa perna nua:

- Se a gente esperasse a fresca…- ela ronronou, cheia de preguiça.

- A estrada será um inferno de mil carros.

Os bancos de couro abrasados, desceram todas as vidraças e, com último olhar para a água fresquinha, partiram. Sonolenta, ela cochilava com o guri no colo, as duas meninas enrodilhadas no banco traseiro. Na serra João a acordaria para vigiar as curvas. Logo ela dormia com o piá febril nos braços – sol demais na cabeça. Três da tarde, o carro avançava no incêndio negro do asfalto.

A longa reta deserta, João baixava as pálpebras, asas de fogo tatalando no céu e, quando percebeu, o calhambeque saía da estrada. Pisou com tanta violência no freio que as portas se abriram e as meninas forma cuspidas. Só não esmagou o peito porque, agarrado ferozmente à direção, e sendo o carro antigo, a barra enterrou-se entre os pedais. E a moça, sem largar o filho, caiu de costas numa pedra.

As crianças gritando e correndo ensanguentadas, Maria quis erguer-se para acudi-las. Apalpou as pernas – inteiras, perfeitas -, não sentia as pernas. Sentada ali no chão, não se sentia sentada. Rodearam-na vozes confusas, nos braços de alguém conduzida ao hospital.

- Trauma – explicou o médico de óculos e máscara.

Em choque, ouvia os comentários:

- A coluna esmagada…Operação, não resiste, Inválida. O resto dos dias…

A porta sacudida de uivos medonhos – era o marido.

- Estou morrendo… – ela queria se agarrar sem poder. – Em chamas… vou explodir…

O avião dourado caindo em chamas era ela que aspirou o éter e perdeu a consciência.

Não morreu, suportou a operação e mais outra, a terceira e mais uma quarta, além de hemorragia interna, de broncopneumonia, da flebite.

Primeiros dias rodeada pela família, parentes vinham de longe visitá-la e, como afinal não morria e passavam-se os meses, aos poucos esquecida no seu cantinho, ao lado da janela: uma entrevada a mais.

De repente o prurido no pé – e por que no esquerdo? Insensível da cintura para baixo – pobre cambito da bruxa de pano foi a coxa poderosa da campeã de tênis -, por que a insofrida coceira? Lá no jardim os gritos dos filhos brincando ao sol. O marido, esse, por onde andará? Quanto tempo a culpa o defenderia de se consolar com outra?

Dobrou-se para coçar o maldito pé e o novelo de lã rolou no tapete – já não poderia apanhá-lo. Chamar a criada era antecipar uma injeção de dois comprimidos. Melhor escondesse as lágrimas, cadela de perna estropiada – escorregando da cadeira, arrastar-se no tapete, rastejar pela rampa e, no meio da rua, debaixo das rodas do primeiro caminhão?

Inclinou-se no braço da odiosa cadeira: com a ferida do cotovelo sentia-se sentada (ao ser estendida na cama, pesando sobre o ombro dolorido, sabia-se deitada). Embora sofresse as mesmas dores, à noite entorpecida pelas drogas, ninguém a visitava. Dando tempo à progressão da paralisia, tudo faziam para esquecê-la.

- Ela está bem – recomendou o doutor à família. – O certo é não mimá-la.

Manobrou a cadeira diante do grande espelho oval: o rosto ainda lindo, o busto soberbo, mulher já não era, objeto de piedade, nojo ou ridículo.

A moça trêmula no espelho devolveu-lhe o sorriso. Nem sonho nem miragem: a praia no domingo de verão, ali na pele o arrepio da água salgada. De volta na tarde tranqüila, a estrada deserta, o céu brilhante de calor. Feliz é um avião dourado pairando sobre as aflições do mundo. Bem acordada – cotovelo esfolado, ombro em chaga viva -, jura a si mesma que não adormecerá. Aperta o filho nos braços enquanto o carro avança mais depressa pela estrada faiscante de sol.
-Você está com uma cara tão esquisita...
-Cara? Que cara?
-Sei lá...cara de fome...
-Pois é, nada no estômago...
-Nada?
-Só borboletas. Coisa leve. E voam.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Busca

E vendo que sempre te quero
Quando menos espero é que vens
Quando já nem espero me tens
E é nestes desencontros que encontro
Os motivos para continar buscando em ti
A pessoa que nunca foste.

Verbalizando [Trecho]

Você é uma possibilidade minha, menino. Possibilidade não verbalizada. Como um sentimento sem nome, feito de uma palavra estranha. Palavra que nunca vai caber em dicionário nenhum, e que ninguém nunca vai inventar. Repetição? Sim. É que eu tento apagar, eu minto pra satisfazer tuas vontades, te pedindo pra não vir. Mas você fica. E vai sempre ficar. Continua existindo, musicado. O inevitável dança aos meus olhos. Aí chega a hora em que distribuo um segredo: o tudo que faltava, talvez seja você. Digo e vou dormir, sem sonho, mas dentro dele.


Disponível aqui ó.


Inicialmente este trecho tinha sido creditado para
Caio Fernando Abreu,
mas a Jaya me procurou e explicou que era dela.
Então, além de corrigir,
eu aproveito para parabenizar a Jaya
 pelo belo trabalho e para dizer que
ser confundida com Caio não é pra qualquer uma,
é pra quem tem talento e sensibilidade.
Confundo tudo.
Em especial,
sentimentos.

Debaixo da roupa, estamos todos nus

Estava na Alemanha, num encontro de escritores, e, todas manhãs, no pequeno-almoço do hotel, havia uma mesa de homens portugueses. Em voz alta, acreditando que ninguém os entendia, libertavam-se a contar as suas aventuras com prostitutas polacas e os seus negócios de Mercedes em segunda mão. Num desses dias, um deles apontou para a minha orelha e disse: olha para este, parece que caiu em cima de um monte de pregos.

Noutra ocasião, estava no Luxemburgo, também num encontro de escritores. Preparava-me para almoçar, conversava com um poeta holandês, enquanto dois homens iam servindo salada em todos os pratos da mesa. Um deles chegou perto de mim e, em português, disse ao outro: olha para este animal, tem o braço todo o sujo. Dessa vez, não fiquei em silêncio. Disse-lhe: por acaso, até tenho o braço bastante bem lavado. Mudou de cor.

Não preciso destes dois exemplos breves para saber aquilo que muitas pessoas pensam repetidamente, todos os dias, e que não me dizem por pudor. Desde que cobri o braço esquerdo com tatuagens que sei aquilo que sentem as mulheres com decotes. É muito frequente o olhar das pessoas que estão a falar comigo fugir-lhes para o meu braço. Depois, disfarçam. No caso dos piercings, é mais inconsciente. Estão a falar comigo e, de repente, começam a ter comichão na sobrancelha, exactamente no lugar do meu piercing.

Eu conheço bem a interpretação geral dos piercings (drogado/homossexual) e das tatuagens (drogado/presidiário). À minha frente, já se referiram aos meus piercings dezenas de vezes como "os brinquinhos". Já fui tratado com desprezo por dermatologistas que acharam que eu não tinha o direito de estar no seu consultório, por estas palavras. Já fui analisado por inúmeras mulheres, senhoras, que, como se estivessem a aproximar-se de uma ferida, perguntaram: isso dói?

Eu compreendo essas pessoas, tanto os putanheiros que negoceiam Mercedes, como as senhoras que comem palmiers na confeitaria. Compreendo até os dermatologistas. À sua maneira, cada um deles se sente rejeitado pelas minhas tatuagens e pelos meus piercings. Acreditam que eu não quero ser como eles, não quero ser eles. Têm de responder de alguma maneira a essa rejeição. É-lhes fácil encontrar falta de sentido em furar o corpo com uma agulha e colocar um pendente metálico ou em preencher uma parte da pele com cicatrizes cheias de tinta. Uma pergunta que também me fazem, visivelmente baralhados, é: porquê?

As razões não são simples e são demasiado íntimas. Não tenho de dá-las. Talvez seja necessário ser eu, estar no meu lugar e ter o meu nome para entendê-las por completo. Essa é a natureza da pele. Para nós próprios, a pele é aquilo que nos protege, a fronteira entre a nossa presença e o mundo físico, o aparelho sensível que capta a percepção daquilo com que interagimos. Para os outros, essa mesma pele é a nossa superfície, a aparência. E, já se sabe, a aparência é tão enganadora, a superfície é tão superficial.

Também é comum admirarem-se com o carácter definitivo das tatuagens, perguntarem-me se não tenho medo de me arrepender. Sorrio. Emociono-me com a inocência daqueles que não percebem que tudo é definitivo e deixa marcas. Eu escrevo livros. Sei que tudo é definitivo e nada é eterno.

Sim, dói fazer piercings e tatuagens. Não, não são uma picadinha e não, não são umas cócegas. Para quê fazê-lo? Já respondi, cada um terá as suas próprias razões. São individuais e ninguém deveria sentir-se ameaçado por elas. Quando pedi a opinião da minha mãe, uma mulher que nasceu no início dos anos 40 e que me trouxe ao mundo nos anos 70, ela respondeu: desde que não seja no meu braço, tudo bem. Fiquei feliz por ter a aprovação que realmente me importava. Tudo óptimo, mãe, é no meu braço.

Além disso, a vida. Na escola do meu filho, sou o pai tatuado que passa entre os pais de fato. No supermercado, sou aquele que é vigiado pelo segurança a pouca distância. No barbeiro, sinto o embaraço no momento de me tocarem na orelha. Mas, quando estaciono o carro, os arrumadores tratam-me sempre por tu e ninguém mete conversa comigo quando vou a uma bomba da gasolina às quatro da manhã.

Em casa, tomo banho. A água morna na minha pele. Deslizo as mãos pelo meu corpo. É meu. Estou dentro dele.


Disponível aqui ó.

Tua falta

Tua presença
A qualquer hora
Se anuncia
E eu te aguardo
Como um grito
E guardo em mim
Você aflito
E te projeto
E me disperso
E te protejo
Aqui dentro
Do meu verso
Parece sonho
Aquele instante
Distante ou não
Do novo encontro
À beira do abismo
Te aviso
Mais um passo
É precipício
É princípio
De teu rosto
Em minhas mãos
Elas vazias
Caminhando
Em tua pele
Que se ausenta
E eu sedenta
E você sede
Esquecimento
Que não cede
Esse silêncio
Que ameaça
E você ainda
Nesse pensamento
Que não cessa
E você ainda
Cada minuto
De tua falta.
E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

sábado, 15 de janeiro de 2011

A Vaca e o Dragão*

Pediu à Deus, o brasileiro, que afastasse-a disto.
Abstração.
Era nisto que se resumia os seus pedidos.

Pediu que a vaca fosse enviada, sozinha, à Índia: para ser cultuada.
Pediu que o dragão fosse enviado, sozinho, à China: para ser festejado.
E caso fossem juntos...que fossem à merda.

Com estes simples desejos atendidos, ela teria paz.


Para A Prima, que sugeriu com muita delicadeza que congelasse
"esse dragão num silêncio bem glacial"
para que ele virasse
"fóssil dos Andes...essa peste".

[Des] Encontros

Se ela o havia tocado como ela imaginava, e como ele dissera...porque então esse afastamento, essa distância, os desencontros, os não-encontros...isso ela não conseguia entender.

-Porquê?
-Compromissos

Que tantos compromissos eram esses que não lhe deixavam tempo para um beijo na boca,
uma conversa de bar,
um 'pit stop' no motel mais próximo?

Semana que vem, ele disse.
Nunca mais, ela pensou.

E torceu para que essa semana passasse depressa.

Madagascar2


-Ô, para de falar que eu tô assistindo o filme.
-Credo, eu só disse oi...
- Então faz como o Capitão, o Recruta, o Ricco e Cowalsque...Sorria e acene! Sorria e acene...

Madagascar


Alex cai numa armadilha
***
-Se eu fosse leão eu não seria tão burro quanto o Alex não...
-Então pede pra Deus pra nascer leão, porque se tu nascer gente...vai nascer assim de novo.
-Mãe, tá chorando?
-Não meu anjo, é só um probleminha com a lente.
Quando eu penso que contornei a situação, ela volta:
-Mãe, e a lente faz o nariz escorrer também?

O maior castigo que eu te dou [Noel Rosa]

O maior castigo que eu te dou
É não te bater
Pois sei que gostas de apanhar
Não há ninguém mais calmo
Do que eu sou
Nem há maior prazer
Do que te ver me provocar

Não dar importância
A sua implicância
Muito pouco me custou
Eu vou contar em versos
Os teus instintos perversos
É este mais um castigo
Que eu te dou

A porta sem tranca
Te dá carta branca
Para ir onde eu não vou
Eu juro que desejo
Fugir do seu falso beijo
É esse mais um castigo
Que eu te dou.


Cantada por Caetano Veloso.
Se eu poderia viver sem ele?
-Posso.
Mas não seria a mesma coisa.

Não me arrependo [Caetano Veloso]

Eu não me arrependo de você
Cê não me devia maldizer assim
Vi você crescer
Fiz você crescer
Vi cê me fazer
Crescer também
Pra além de mim.

Não, nada irá neste mundo
Apagar o desenho que temos aqui.

Nem o maior dos seus erros
Meus erros, remorsos
O farão sumir.

Vejo essas novas pessoas
Que nós engendramos em nós
E de nós.

Nada
Nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz.


Cantada por Caetano Veloso.

Língua [Caetano Veloso]

Gosta de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões
De prosódia
E uma profusão
De paródias
Que encurtem dores
E furtem cores
Como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?

Cantada por Caetano Veloso.
Às vezes acho que o juízo é tudo o que me atrapalha.
Hoje, temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas somos mais juntos. Sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna tão complicado. Digamos, então, que nada se perderá. Pelo menos, dentro da gente.
Envio esta carta porque nunca mais quero você na minha frente. E dessa vez falo sério.
Nunca mais quero ouvir a sua voz, mesmo que seja se derramando em desculpas. Nunca mais quero ver a sua cara, nem que seja se debulhando em lágrimas arrependidas. Quero que você suma do meu contato, igual a um vírus ao qual já estou imune.

A verdade é que me enchi. De você, de nós, da nossa situação sem pé nem cabeça. Não tem sentido continuarmos dessa maneira. Eu, nessa constante agonia, o tempo todo imaginando como você vai estar. E você, numas horas doce, noutras me tratando como lixo. Não sou lixo. Tampouco quero a doçura dos culpados, artificial como aspartame.

Fico pensando como chegamos a esse ponto. Como nos permitimos deixar nosso amor acabar nesse estado, vendido e desconfiado. Não quero mais descobrir coisas sobre você, por piores ou melhores que possam ser. Não quero mais nada que exista no mundo por sua interferência. Não quero mais rastros de você no meu banheiro.

Assim, chega. Chega de brigas, de berros, de chutes nos móveis. Chega de climas, de choros, de silêncios abismais. Para quê, me diz? O que, afinal, eu ganho com isso? A companhia de uma pessoa amarga, que já nem quer mais estar ali, ao meu lado, mas em outro lugar? O tédio a dois – essa é a minha parte no negócio? Sinceramente, abro mão.

Vou atrás de um outro jeito de viver a minha vida, já que em qualquer situação diferente estarei lucrando. Mas antes faço questão de te dizer três coisas.

Primeira: você não é tão interessante quanto pensa. Não mesmo. Tive bem mais decepções do que surpresas durante o tempo em que estivemos juntos.

Segunda: não vou sentir falta do teu corpo. Já tive melhores, posso ter novamente, provavelmente terei. Possivelmente ainda esta semana.

Terceira: fiquei com um certo nojo de você. Não sei por quê, mas sua lembrança, hoje, me dá asco. Quando eu quiser dar uma emagrecida, vou voltar a pensar em você por uns dias.

Bom, era isso. Espero que esta carta consiga levantar você do estado deplorável em que se encontra. Mentira. Não espero nenhum efeito desta carta, em você, porque, aí, veria-me torcendo pela sua morte. Por remorso. E como já disse, e repito, para deixar o mais claro possível, nunca mais quero saber de você.

Se, agora, isso ainda me causa alguma tristeza, tudo bem. Não se expurga um câncer sem matar células inocentes.

Adeus, graças a Deus.
Mesmo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria. Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão de se sentir feliz.
Que tudo seja leve
de tal forma
que o tempo nunca leve.
Então eu virei pra ela e falei assim: ah, nada, boba, também é assim, se der, bem, se não der, amém, toca pra frente.
Então, que não se arrependa.
Da gente.
Do que fomos.
De tudo o que vivemos.
Que você me guarde na memória, mais do que nas fotos.
Que termine com a sensação de ter me degustado por completo, mas como quem sai da mesa antes da sobremesa: com a impressão que poderia ter se fartado um pouco mais.
E que, até o último dia da sua vida, você espalhe delicadamente a nossa história, para poucos ouvintes, como se ela tivesse sido a mais bela história de amor da sua vida.
E que uma parte de você acredite que ela foi, de fato, a mais bela história de amor da sua vida.
Que você nunca mais deixe de pensar em mim quando for a Londres, escutar Dream’ Bout Me ou ler Nick Hornby.
E, por fim, que você continue a dançar na sala.
Para sempre.
Mesmo quando eu não estiver mais olhando.

Macho não ganha flor

Minha irmã e a mãe faziam compras. Afinal sozinha, a casa inteira para mim. De roupão, antes de entrar no banho, dava os últimos retoques diante do espelho.

De repente, com susto, senti que não estava só. Um cheiro no ar? Um estalido no soalho? Uma sombra no canto do olho?

Pronto! Aquela mão suada me tapou a boca. E a outra afogava o pescoço.

— Não grite! Nem um pio. Que eu te mato!

Me empurrou contra a parede. Abriu com violência o roupão.

— Oba!

Ai de mim, apenas calcinha e sutiã. Daí ele começou a fazer coisas.

Me beijou o rosto, o pescoço, um seio e outro. Ui, que nojo. Gemendo, se esfregava no meu corpo.

Todo vestido. Só abriu o zíper da calça.

— Faça tudo o que eu mandar. Bem quietinha.

Sem aliviar a mão esquerda no meu pescoço.

— Já matei uma. Não me custa apagar outra!

E arrancou o meu roupão. Tentei correr para a porta. Me sacudiu pelo cabelo e esfregou a cara na parede.

— Quer morrer, sua vadia?

Era o bafo podre da morte. O corpo não parava quieto, tanto que eu tremia. O coração me batia aos saltos no joelho.

Em desespero, chorava e soluçava baixinho. Tão assustada, nem me defendia. Sem força de erguer os braços.

Daí percebi que ele tentava, mas não conseguia. Acho que eu estava muito nervosa e chorando sem parar. Ele beijava e chupava ora um seio, ora outro. Me corria a mão boba pelo corpo.

— Não sabe que deve lutar? Por que não se defende como as outras?

Ele que não sabia: essa carne, com fúria manuseada, já não era a minha. Para não enlouquecer, de tamanho horror, me desligara do próprio corpo. Aquele pobre objeto seminu pertencia a outra.

A minha querida boneca, ela sim a melhor amiga, chorando com olhinho de vidro ao meu lado — e não eu, não eu —, que era desfrutada pelo monstro. Me xingava de piranha e cadela. Mandava eu calar a boca, assim ele não conseguia.

— Abra o olho. Não pisque. Feche o olho. Que porra. É o mesmo olho azul de minha mãe.

Daí eu pedi e supliquei. Em nome da santa mãezinha dele. Não me fizesse mal.

— Ela está me olhando com a tua cara!

Podia levar tudo de valor na casa. Pelo amor de Deus, me deixasse em paz. Era noiva e ia casar em três meses.

Ao falar que estava noiva ele assanhado começou tudo de novo.

— Aposto que é muito safadinha, né? Não transa com teu noivo? O que você faz com ele? Fala, sua vadia!

Ah, não fala? Que ficasse de joelho. Outra vez, de pé. Sentada. Deitada. De costas. Pernas fechadas. E abertas. Bem abertas.

E nada.

Cada vez mais irritado. E mais gago. A culpada era eu. Que só chorava. E só sabia tremer. Que porra.

— Não aprendeu nada? Não trepa com teu noivo? É boiola, por acaso?

Esse viadão, ele bem podia avisá-lo: eu era imprestável. Mais fria que uma puta velha. Se, ao menos, estivesse vestida. Gostava mesmo era de arrancar a tua roupa. Rebentar. Rasgar. Assim, quase nua, calcinha muito sem graça, não lhe agradava.

Disse que todas choram. Mas eu era a pior. Se a mulher soubesse a bruxa que fica, nunca mais chorava. Grande merda.

Chegou a mandar que botasse uma saia e blusa. Sapato de salto alto. Ou, melhor, um vestido. Vermelho, se tivesse.

Então olhou o relógio. E desistiu. Porra. E mais porra.

— Que tanto chora e treme e se desespera? O que tem de mais? Pensa que é a primeira? E a única? Nem é tão ruim assim. Algumas bem que gostam. Uma ruiva, quando eu saía, pediu que voltasse. E quis me dar uma rosa ou cravo, sei lá.

Ofendido e gaguejando.

— Mas eu avisei: "Macho não ganha flor."

Me olhou de soslaio.

— O que eu quero...

Enxugava a cara molhada de suor — e sem tirar o óculo escuro.

— ...vou lá e me sirvo.

Jogou a toalha num canto.

— Ah, se eu tivesse tempo. Porra. Já te ensinava o que é bom. Porra.

Uma hora tinha se passado. Uma hora que, no relógio parado da memória, se repetiria em mil horas inteiras de tortura e terror. E pelo resto da vida quantas vezes seria eu, indefesa no sonho, o pasto de tal bicho espumante de raiva?

Afinal ele parava de tentar. E fechou o zíper da calça.

Já não me olhava de frente. Acho que com vergonha, já pensou? Porque nada tinha conseguido.

— Agora te deixo aqui pelada.

Chutando o roupão debaixo da cama.

— Você desta vez se livrou.

Ressentido e com ódio.

— Só porque é uma vadia de olho azul. Como aquela outra.

Recolheu no chão a sua velha mochila.

— Senta aí na cama. Não se mexa daí. Até eu bater a porta. Senão eu volto. E será pior pra você. Ouviu, sua puta?

Foi catando na penteadeira o meu relógio de pulso, o celular, o cartão do banco. E, no estojinho azul de porcelana — ai, não —, até umas pobres jóias que a avó deixou.

Antes de sair, espiou em volta.

— Me dá a calcinha.

Que desgraçado.

Colheu a última peça. Macho não ganha flor. Se olhou demorado no espelho. Ainda surpreso e incrédulo, gaguejante.

— Que porra. Isso nunca me aconteceu!

Ajeitou o óculo escuro e o boné vermelho. Gostou do que viu. O que eu quero, vou lá e me sirvo.

E lá se foi.

Tremendo e chorando, me vesti todinha. Mas não deixei o quarto. Ali sentada, chorando e tremendo, até a volta de minha mãe.

Nunca mais ela esqueceu de fechar a porta. Com dois giros na chave.

Cada dia a gente notava a falta de algum objeto. Mas isso era o de menos.

Mudamos de bairro. Fiz tratamento com uma terapeuta. Tomei tranqüilizante e antidepressivo. Dois a três comprimidos por dia, mas pouco adiantou.

Uma vez engoli um punhado deles. Não foi o bastante. Só dormi uma noite e um dia inteiro.

Na mesma cama, do olhinho de vidro escorrendo uma lágrima azul, essa boneca toda em cacos.

O noivo, que me adora, apoiou sem reserva. Ao meu lado no desespero e no horror. Não perdeu a esperança. E me salvou de mim mesma.

Seis meses depois, casamos.

Deve ser problema meu, sei lá. O nosso relacionamento não está dando certo.

A tristeza é feia e quer casar [Silmara Franco]

Está no dicionário: Tristeza: [Do lat. tristitia.] S.f. 1. Qualidade ou estado de triste. 2. Falta de alegria. 3. Pena, desalento, consterna...