Já ouvi palavras de ternura que foram capazes de me transportar aos lugares mais distantes, aos sentimentos mais profundos. Desta vez, elas vieram de quem não se esperava.
O convite era para passarmos o domingo no sítio de amigos de meus pais. Dada a completa falta de intimidade entre minha família urbanóide e assuntos ligados à fauna e à flora, imaginei que seria declinado. Engano. Domingo de manhã, a casa começou a se arrumar para ir ao tal churrasco na piscina: um programa alienígena para meus dez anos de vida. Maiôs, bóias, protetor solar – que, na época, era restrito ao Hipoglós e aplicado apenas no rosto dos mais branquelos como eu – e toda a parafernália que a circunstância exigia. Esperando pelo melhor, tratei de colocar na mala meu kichute preto de travas altas, que gostava de amarrar de dois jeitos diferentes: ou com o cadarço dando voltas no tornozelo, ou com o cadarço dando voltas na sola, entre as travas. Esta última me parecia a mais boleira e, por isso, era a preferida. Vai que no sítio tinha um campo de futebol, pensei. E, à revelia da matriarca, lá se foi o kichute para dentro da mala com os maiôs.
A primeira coisa que vi ao chegar foi um campo enorme, oficial, novinho. Meu coração disparou diante da expectativa de passar um dia inteiro jogando bola. De mãos dadas com meu pai, desci do carro para cumprir o protocolo infantil da chegada: beijinhos, apertos de bochecha, elogios a respeito de meu tamanho e referência a como meus olhos eram iguais aos de meu pai. O manual da criança educada exigia que eu sorrisse e ignorasse a dor que vinha do aperto em minhas bochechas. Tanto fazia, eu queria apenas correr para o campo.Atrás de mim, minhas irmãs, meu irmão caçula e a matriarca,que,mesmo fazendo força para esconder,desfilava sua prole orgulhosamente.
Depois de longos e dolorosos minutos, já com todos reunidos na piscina, alguém finalmente começou a organizar o jogo. Para meu completo desespero, notei que se tratava de um evento masculino – embora esse pequeno detalhe eu fosse capaz de tirar de letra, afinal, todo jogo de bola era um evento masculino naquela época – e adulto. A matriarca jamais me deixaria jogar com homens bem maiores do que eu, pensei. Antecipando o problema, corri para pedir que ela intercedesse a meu favor. Muito a contragosto, lá foi minha mãe falar com o rapaz. O momento era de tensão: o organizador, que devia ter 20anos, me olhava com uma expressão incrédula.Como tantos outros antes dele, pude intuir que temia pelo sucesso da pelada: colocar em campo uma menina poderia arruinar a brincadeira. Foi então que meu pai se juntou ao grupo e recebi autorização para colocar a chuteira. Como de costume, fui a última a ser escolhida. Você aprende a lidar com o preconceito bastante cedo na vida e eu sabia exatamente o que fazer naquela situação: jogar bola. Quando não esperam muito de você, fica fácil superar a expectativa.
Primeira de muitas
E foi assim que, em minutos, fiz dois gols, um deles chutando de longe, num movimento de pura inspiração, colocando a bola no que ficou em minha memória como sendo o ângulo superior esquerdo do goleiro, e dei vários dribles nos filhos dos amigos de meus pais. Quando saí do campo, vi meu pai me esperando. Ele me pegou pelo pescoço, como sempre fazia, dizendo que era assim que se pegavam gatinhos, abaixou e sussurrou ao pé de meu ouvido: “Bilu, você é o meu orgulho”. Foi assim que ouvi, pela primeira vez, a maior declaração de amor da minha vida. A partir desse dia, sem nenhum motivo aparente, meu pai repetia a frase, que virou a assinatura verbal de nossas conversas: antes de desligarmos o telefone ou quando eu ia até o seu quarto dar boa-noite.
A vida seguiu, meu pai desistiu, e eu conheci outras declarações de amor, também ditas ao pé do ouvido, e também capazes de fazer com que eu passasse mais forte pelo dia – mas a de meu pai nunca perdeu posição.
Anjo da guarda
No dia 11 de janeiro, Mel, minha sétima sobrinha, nasceu. Uma semana depois, deitada na cama de minha irmã, vendo-a amamentar cercada por seus outros três descendentes, lembrei do que me disse um astrólogo-espírita há dois anos: depois de perguntar se eu pretendia ter filhos e de me ouvir explicar que eu dificilmente os teria porque era gay e não via uma criança em minha vida, ele disse que era uma pena porque havia uma pequena alma esperando para nascer em mim, e que essa alma iria me acompanhar até o último dia, e cuidar de mim e me agasalhar e me alimentar espiritualmente.Repeti a ele que não pretendia mesmo ter filhos. Foi quando ele falou: ela vem de qualquer jeito, nem que seja em uma pessoa muito perto de você. Naquela hora, vendo Mel ser alimentada, contei a história a minha irmã e a meus sobrinhos, dizendo que não sabia se acreditava nela, mas que me parecia curiosa.
Todos riram, menos Paulo, o mais velho. Aos 15 anos, Paulo compartilha comigo da paixão pelo futebol e é meu fiel escudeiro.Juntos, jantamos fora, vamos aos mais variados estádios, vemos jogos na TV, falamos da vida. Carinhoso, não me poupa de abraços e beijos e cafunés.Ao me ouvir contar a história do astrólogo-espírita, levantou e, enquanto todos paparicavam o bebê, enxergando nele a tal alma-guia que iria me proteger, disse ao pé de meu ouvido: “Essa pessoa já chegou, e faz tempo. Essa pessoa que vai cuidar de você até o último dia sou eu”.
E foi assim, num domingo de janeiro de 2008, que a declaração de amor de meu pai passou a ser a segunda melhor que eu já ouvi na vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário