terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Beijo a lápis

Entrou na loja com perfume de erva-doce (a loja, não ele), foi atendido pela moça de cabelos verdes e anel no dedo do pé. Achou esquisito (o anel, não o cabelo) e, mesmo assim, pediu:
– Quero um beijo.
A moça abriu um sorriso e explicou:
– Aqui é uma papelaria.
– Eu sei. Quero um beijo.
A moça fechou o sorriso. Não tinham beijos ali. Só papéis e canetas.
Ele caminhou mais alguns metros e, diante da vitrine com um gato de verdade, dormindo aos pés de um anjo de mentira e outros badulaques, sorriu para o vendedor, que já o aguardava na entrada:
– Quero um beijo.
– É para o senhor mesmo?
– Sim.
– Só um minuto, por favor.
Dali a pouco, o vendedor voltou. Desculpou-se:
– Não temos mais nenhum.
– Ah, pena.
– Quer deixar seu telefone? Quando chegar, eu aviso.
– Não… Era para hoje.
– Fico lhe devendo, então.
Ao sair, não viu mais o gato. Pensou, como é que alguém fica devendo um beijo? Pode-se dever muita coisa: favor, explicação, visita. Beijo, não. Loja mais esquisita. Parou para tomar um café na livraria. Enquanto namorava os doces, tão arrumados na cestinha de vime, perguntou para a garçonete que roía as unhas:
– Tem beijo?
– Só beijinho.
Beijinho ele não queria. Aliás, nada terminado em inho, como em ‘sozinho’. Pagou seu café, folheou um livro e saiu. Viu o gato, passeando do outro lado da rua. Morava a duas quadras dali (ele, não o gato), no décimo segundo andar do edifício mais antigo da cidade. Entrou no elevador, dobrou o casaco no braço. A porta se fechou mais devagar que de costume. No último instante, uma mão a alcançou. Era a vizinha do décimo primeiro, de blusa com passarinhos e saia-lápis. Ele se fingiu entretido com os botões (do casaco, não do elevador), ela puxou assunto. Riram, a moça era meio doidinha. Foi quando ela lhe disse ao pé do ouvido:
– Sabe duma coisa?
Com o lápis da saia, buscou-lhe a boca. E desenhou nela um beijo.


Disponível aqui ó.

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