"...E tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado..."
"Lαdo α lαdo com o desejo de defender α própriα intimidαde, há o desejo intenso de me confessαr em público e não α um pαdre." [Clαrice Lispector]
terça-feira, 15 de março de 2011
À Beira do Mar Aberto
E de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuvens, e te imagino então parado sozinho entre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolsos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que não me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber que me envolves agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costumas afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundandando as sombrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pêlos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim, percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasses quase deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno, veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar por inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu, temendo a faca, a pedra, o gume das tuas histórias longas, das tuas memórias tristes, cheias de corredores mofados, donzelas velhas trancadas em seus quartos, balcões abertos sobre ruazinhas onde moças solteiras secam o cabelo, exibindo os peitos, tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo deste tempo e choro sempre quando o meu perigo aumenta e sem me conter te assaltaria feito um vampiro faminto para te sangrar enquanto meus dentes penetrando nas veias de tua garganta arrancassem do fundo essa vida que me negas delicadamente, de cada vez que me procuras e me tomas, contudo me enveneno mais quando não vens e ninguém então me sabe parado feito velho num resto de sol de agosto, escurecido pela tua ausência, e me anoiteço ainda mais e me entrevo tanto quando estás presente e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorando sobre isso que sou e penses que sabe que se aceito tuas tramas, e vomitas sobre mim, e depois puxa a descarga e te vais, me deixando repleto dos restos amargos do que não digeriste, mas mesmo assim penses que poderias aceitar também meus jogos, esses que não proponho, ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado, apenas com água, uma água rala e pouca, não essa densa espessa turva do mar de que me falaste no começo da tarde que agora vai-se indo devagar atrás das minhas costas, e parado aqui do teu lado, sem que me vejas, lentamente afio as pedras e as facas do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recomponho sozinho um por um dos teus traços, dos teus pelos, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno n a praia onde talvez caminhes ainda ,enquanto me adentro em gumes, resvalaram outra vez pelos meus, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-te até o fundo, para que te arrastes nesse chão que juncamos todos os dias de papéis rabiscados e pontas de cigarro, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco, bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminado por nossa falsa pureza, encharcados de palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e me anoitece a cada dia, e passo a passso afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, à medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar temeroso de olhos ou de peles, os gelos, os vermes roendo os porões que insistimos em manter até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoniada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo e enquanto falas e me enredas e me envolves e me fas cina com tua voz monocórdia e sempre baixa, de estranho acento estrangeiro, penso sempre que o mar não é denso escuro que me contas, sem palmeiras nem ilhas nem baías nem gaivotas, mas um outro mais claro e verde, num lugar qualquer onde sempre é verão e as emoções limpas como as areias que pisamos, não sabes desse mar porque nada digo, e temo que seja outra vez aquela coisa piedosa...
Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis não formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem e, sobretudo, como dizias, emoções. Que nem sempre se mostram.
segunda-feira, 14 de março de 2011
quinta-feira, 10 de março de 2011
Sintaxe à vontade
Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
a partir de sempre
toda cura pertence a nós
toda resposta e dúvida
todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser
todo verbo é livre para ser direto e indireto
nenhum predicado será prejudicado
nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final!
afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas
e estar entre vírgulas pode ser aposto
e eu aposto o oposto que vou cativar a todos
sendo apenas um sujeito simples
um sujeito e sua oração
sua pressa e sua verdade,sua fé
que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não
que enxerguemos o fato
de termos acessórios para nossa oração
separados ou adjuntos, nominais ou não
façamos parte do contexto da crônica
e de todas as capas de edição especial
sejamos também o anúncio da contra-capa
mas ser a capa e ser contra-capa
é a beleza da contradição
é negar a si mesmo
e negar a si mesmo
pode ser também encontrar-se com Deus
com o teu Deus
Sem horas e sem dores
Que nesse encontro que acontece agora
cada um possa se encontrar no outro
até porque... tem horas que a gente se pergunta...
por que é que não se junta
tudo numa coisa só?
O Azar
Castigo assim tornar tão leve
Somente a Sísifo se cobra!
Por mais que mão se ponha à obra,
A Arte é longo e o Tempo é breve.
Longe dos túmulos famosos,
Num cemitério já sepulto,
Meu coração, tambor oculto,
Percute acordes dolorosos.
- Muito ouro ali jaz sonolento
em meio à treva e ao esquecimento,
esquivo à sonda e ao enxadão;
E muita flor exala a medo
Seu perfume como um segredo
Nas mais profunda solidão.
Somente a Sísifo se cobra!
Por mais que mão se ponha à obra,
A Arte é longo e o Tempo é breve.
Longe dos túmulos famosos,
Num cemitério já sepulto,
Meu coração, tambor oculto,
Percute acordes dolorosos.
- Muito ouro ali jaz sonolento
em meio à treva e ao esquecimento,
esquivo à sonda e ao enxadão;
E muita flor exala a medo
Seu perfume como um segredo
Nas mais profunda solidão.
O Vampiro
Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho ao jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!
Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao vento, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.
Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! - se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!
Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé deste corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.
Eu lhe evocava a esplêndida altivez nativa,
O olhar de intensa luz e de graças armado,
O cabelo a servir-lhe de elmo perfumado
E cuja súbita lembrança o amor se aviva.
Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria
E dos réus frescos pés às tuas negras tranças
Abriria o tesouro das carícias mansas,
Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,
Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,
Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.
Em meu coração penetraste
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho ao jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!
Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao vento, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.
Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! - se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!
Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé deste corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.
Eu lhe evocava a esplêndida altivez nativa,
O olhar de intensa luz e de graças armado,
O cabelo a servir-lhe de elmo perfumado
E cuja súbita lembrança o amor se aviva.
Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria
E dos réus frescos pés às tuas negras tranças
Abriria o tesouro das carícias mansas,
Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,
Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,
Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.
A que está sempre alegre
Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.
A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.
As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.
Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!
Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;
E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,
E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.
A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.
As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.
Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!
Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;
E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.
Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,
E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!
A língua lambe
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
quarta-feira, 9 de março de 2011
sexta-feira, 4 de março de 2011
quarta-feira, 2 de março de 2011
E mesmo sorrindo por ai, cada um sabe a falta que o outro faz. Nunca mais se viram, nunca mais se tocaram e nunca mais serão os mesmos. É fácil porque os dias passam rápidos demais, é dificil porque o sentimento fica, vai ficando e permanece dentro deles. E todos os dias eles se perguntam o que fazer. E imaginam os abraços, as noites com dores nas costas esquecidas pelo primeiro sorriso do outro. E que no momento certo se reencontrem e que nada, nada seja por acaso.
Escutatória
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar, ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.
Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma".
Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.
O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
Loucos e santos
Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.
Minha lucidez
Não sou único,
Nem mediúnico,
Nem médico.
Não sou mágico,
Nem trágico,
Nem enciclopédico.
Não sou clássico,
Nem jurássico,
Nem frenético.
Não sou prático,
Nem fanático,
Mas sou ético.
Sou onírico,
Sou lírico,
Sou lúdico.
Sou pávido,
Sou ávido
Sou lúcido.
Toda terça
Otávio não se importava com as minhas mentiras, estava convencido de que toda mentira era apenas mais uma versão da verdade. Tinha me explicado que só o fato de eu ter escolhido determinada mentira e não outra qualquer já era suficiente para fazer dela uma confidência, uma revelação.
Mas tudo está bem agora, eu digo: agora. Houve uma mudança de planos e eu me sinto incrivelmente leve e feliz. Descobri tantas coisas. Tantas, Tantas. Existe tanta coisa mais importante nessa vida que sofrer por amor. Que viver um amor. Tantos amigos. Tantos lugares. Tantas frases e livros e sentidos. Tantas pessoas novas. Indo. Vindo. Tenho só um mundo pela frente.
Me perguntam, assim, o que tu achas de tal coisa. Pô, eu não sei o quê que eu acho. Na hora eu acho uma coisa, meia hora depois eu posso achar outra. Eu não tenho opinião definida sobre nada. Não acho que isso seja insegurança. Acho que é abertura, acho que tudo é passível de uma outra interpretação.
Os Dons das Fadas
Realizava-se a grande reunião das fadas, a fim de procederem à partilha dos dons entre todos os recém-nascidos das últimas vinte e quatro horas.
Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e fantasistas Irmãs do Destino, todas essas Mães estranhas da alegria e da dor: umas tinham aparência sombria e rebarbativa, outras a tinham folgazã e maliciosa; umas eram jovens, e sempre o haviam sido, outras eram velhas, e também sempre o haviam sido.
Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido, cada qual trazendo nos braços o seu recém-nascido.
Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstâncias Invencíveis, estavam amontoados ao lado do Tribunal, como os prêmios sobre o tablado, em dia de distribuição de prêmios. O que havia de particular no caso é que os Dons não eram a recompensa de um esforço, mas pelo contrário, uma graça concedida àquele que ainda não vivera, uma graça capaz de determinar seu destino e de se tornar tanto a origem de seu desdita, quanto de sua felicidade.
As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque era grande o número dos solicitantes, e o mundo intermediário colocado entre o homem e Deus está submetido, tanto quanto nós, à lei terrível do Tempo e de sua infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.
Na realidade, elas estavam tão atordoadas quanto ministros em dia de audiência, ou empregados do Estabelecimento de Penhores, quando um dia de festa nacional autoriza as restituições sem pagamento. Acho mesmo que olhavam, de vez em quando, para o ponteiro do relógio, com impaciência igual à de juizes humanos que, por estarem em função desde cedo, não podem deixar de sonhar com o jantar, a família e os queridos chinelos. Se, na justiça sobrenatural, há um pouco de precipitação e de acaso, não nos admiremos que o mesmo aconteça às vezes na justiça humana. Nós mesmos seríamos, em tal caso, juizes injustos.
Dessarte foram cometidas, nesse dia, algumas tolices – que poderíamos estranhar, se a prudência, e não a fantasia, fosse a característica peculiar, eterna, das Fadas.
Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi concedido ao único herdeiro de uma família riquíssima que, não possuindo noção alguma de caridade, como também nenhuma cobiça dos bens visíveis da terra, devia encontrar-se, mais tarde, grandemente atrapalhado com seus milhões.
Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Força Poética ao filho de um triste pobretão, um cavoqueiro absolutamente incapaz quer de favorecer os dotes, quer de prover às necessidades de sua lamentável progênie.
Esquecia-me de lhes dizer que a distribuição, em tais casos solenes, não comporta apelação, e que nenhum dom pode ser recusado…
Todas as Fadas já se estavam levantando, julgando concluída sua tarefa, porque não restava mais presente algum, munificência alguma para atirar a toda aquela nulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modesto negociante, creio eu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrômicos a Fada que lhe ficava mais próxima, exclamou:
- Oh! Senhora! está-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno! Não quero ficar sem receber coisa alguma!
A Fada deveria ficar perplexa, porque não restava mais nada.
Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante conhecida, embora raramente aplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas deidades etéreas, amigas do homem, e muitas vezes forçadas a se adaptarem às suas paixões, tais como as Fadas, os Gnomos, as Salamandras, as Sílfides, os Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, – quero referir-me à lei que concede às Fadas, em semelhante caso, isto é, no caso de os presentes se acabarem, a faculdade de concederem mais um, suplementar e excepcional, sob condição, todavia, de ela possuir imaginação bastante para criá-lo imediatamente.
Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurança digna de sua situação:
- Dou a teu filho… dou-lhe… o Dom de agradar!
- Mas agradar como? agradar? por que agradar? – perguntou teimosamente o pequeno comerciante, que sem dúvida era um desses raciocinadores tão comuns, incapazes de se elevarem até a lógica do absurdo.
- Porque sim! porque sim! – replicou a Fada, colérica, voltando-lhe as costas; e, reunindo-se ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes:
- Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer compreender e que, havendo obtido para o filho o melhor quinhão, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutível?
Para crescer
Vi que era o tipo de pessoa que acha uma graça danada na vida. Ele é feliz, e a felicidade dele me contagiou.
24 de novembro de 2010
Quando somos ávidos, perdemos detalhes. Diz o ditado que "Deus mora nas palavras e o Diabo nos detalhes". O interessante do conhecimento é sempre a busca, a descoberta...
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