terça-feira, 30 de novembro de 2010

Comigo [Zeca Baleiro]

Você vai comigo aonde eu for
Você vai bem, se vem comigo
Serei teu amigo e teu bem
Fica bem, mais fica só comigo.

Cantada por Zeca Baleiro.
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

[Do Desejo]

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Só se deve beber por gosto: beber por desgosto é uma cretinice.
Não me ajeito com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco: não há nada que substitua o sabor da comunicação direta.

Bilhete

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
Enfim,
Tem de ser bem devagarinho, Amada,
Que a vida é breve, e o amor mais breve ainda.
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Sou dono de uma verdade que não se traduz em palavras; sou inteligente, sei disso, mas minha inteligência não é capaz de iluminações nem de distribuir justiça.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O mar mais longe que eu vejo

Tem piedade, Satã,
desta longa miséria
[Baudelaire: Litanias de Satã]

Meu corpo está morrendo. A cada palavra, meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais -uma mínima extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável. Esta coisa terrível de não saber a minha idade, de não poder calcular o tempo que me resta, esta coisa terrível de não haver espelhos nem lagos, das águas do mar serem agitadas e não me permitirem ver a minha imagem. Perdi todas as minhas imagens: as das fotografias, dos espelhos, dos lagos. Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.

Chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu e eu senti fome. Então começa a subir um vapor da terra, e as nuvens, há as nuvens que se amontoam e depois explodem em chuva, e depois da chuva são as estrelas e a lua. Não há uma manhã, uma tarde, uma noite: há o sol abrasador queimando aterra e a terra queimando meus pés, depois a chuva, depois as estrelas e a lua. No começo eu achava que não havia tempo. Só aos poucos fui percebendo que se formavam lentos sulcos nas minhas mãos, e que esses sulcos, pouco mais que linhas no princípio imperceptíveis, eram rugas. E que meus cabelos caíam. Meus dentes também caíam. E que minhas pernas já não eram suficientemente fortes para me levar até aquela elevação, de onde eu podia ver o mar e o mar que fica mais além do mar que eu via da praia. Antes, eu ia e voltava da elevação no sol abrasador depois eu só conseguia sair daqui no sol abrasador e voltar na chuva e, depois ainda só nas estrelas e na lua. Agora são necessárias muitas chuvas, muitas estrelas, muitas luas e muitos sóis para ir e voltar. E isso é o tempo, muito mais tarde descobri que isso era o tempo. Fico aqui o dia inteiro, não há ninguém, não há nada. Fico aqui na gruta o dia inteiro, sem saber mais quando é sol abrasador, quando é chuva ou lua e estrelas, eu não sei mais.

No começo eu pensei também que houvesse outros, índios talvez, animais, formigas, baratas. Não havia ninguém, nada. Da elevação eu podia ver o todo, e o todo era só a areia e os coqueiros que me alimentam. O todo não tinha ninguém, não tinha nada. Eu chorava, no começo eu chorava e não entendia, apenas não entendia, e não entender dói, e a dor fazia com que eu chorasse, no começo. Eu sentia saudade, no começo, uma saudade apertada de gente, principalmente de gente. Não me lembro mais qual era o meu sexo, agora olho no meio das minhas pernas e não vejo nada além de uma superfície lisa e áspera, mas no começo eu sabia, eu tinha um sexo determinado, e a saudade que eu tinha de gente fazia com que eu rolasse horas na areia do sol abrasador, abraçando meu próprio corpo, inventando um prazer que eu precisava para me sentir vivendo talvez, porque eu não tinha medos nem preocupações nem mágoas nem nada concreto nem expectativas, as minhas células amorteciam, eu sentia que ia acabar virando uma palmeira, os meus pés agora parecem raízes, mas ainda tenho mãos, então eu rolava na areia quente enquanto meus dentes faziam marcas fundas roxas nos meus braços, nas minhas pernas e de repente todas as minhas células explodiam em vida, exatamente isso, em vida, eu tinha dentro de mim todo aquele sol todo aquele mar tudo aquilo que eu conhecera antes, que conheceria depois, se não estivesse aqui. Eu ficava amplo, na areia, abraçado a mim mesmo.

Talvez, sim, talvez eu fosse mulher, porque pensava no príncipe, a minha mão direita era a minha mão e a minha mão esquerda era a mão do príncipe, e a minha mão direita e a minha mão esquerda juntas eram as nossas mãos. Apertava a mão do príncipe sem cavalo branco, sem castelo, sem espada, sem nada. O príncipe tinha uns olhos fundos, escuros, um pouco caídos nos cantos e caminhava devagar, afundando a areia com seus passos. O príncipe tinha essa coisa que eu esqueci como é o jeito e que se chama angústia. Eu chorava olhando para ele porque eu só tinha ele e ele não falava nunca, nada, e só me tocava com a minha mão esquerda, e eu cantava para ele umas cantigas de ninar que eu tinha aprendido antes, muito antes, quando era menina, talvez tenha sido uma menina daquelas de tranças, saia plissê azul-marinho, meias soquete, laço no cabelo, talvez. Sabe, às vezes eu me lembro de coisas assim, de muitas coisas, como essa da menina -como se houvesse uma parte de mim que não envelheceu e que guardou. Guardou tudo, até o príncipe que um dia não veio mais. Não, não foi um dia que ele não veio mais, foram muitos dias, em muitos dias ele não veio mais, a água do mar salgava a minha boca, o sol queimava a minha pele, eu tinha a impressão de ser de couro, um couro ressecado, sujo, mal curtido. E havia essa coisa que também esqueci o jeito e que se chamava ódio. De vez em quando eu pensava eu vou sentir essa coisa que se chama ódio. E sentia. Crescia uma coisa vermelha dentro de mim, os meus dentes rasgavam coisas. Devia ser bom, porque depois eu deitava na areia e ria, ria muito, era um riso que fazia doer a boca, os músculos todos, e fazia as minhas unhas enterrarem na areia, com força.

Tenho um livro comigo, não é um livro, era um livro, mas depois ficou só um pedaço de livro, depois só uma folha, e agora só um farrapo de folha, nesse farrapo de folha eu leio todos os dias uma coisa assim:
"Tem piedade, Satã, desta longa miséria". Só isso. Fico repetindo: "tempiedadesatãdestalongamisériatempiedadesatãdestalongamisériatempiedade" tempo, tempo. Aí sinto essa coisa que ainda não esqueci o jeito e que se chama desespero.

Havia outras pessoas, sim. Não aqui, mas lá, bem para lá do mar que eu avistava de cima da elevação e que é o mar mais longe que eu vejo. Mais longe ainda tinha gente, a gente que me trouxe para cá. Só não lembro mais por quê. Verdade, eu tinha qualquer coisa assim como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro. Então eles me trouxeram. Por isso, me trouxeram. Lembro, sim, eu lembro que havia coisas escuras que eles faziam e que eu não fazia, correntes, sim, sim, eu lembro: havia correntes e fardas verdes e douraduras e cruzes, havia cruzes, cercas de arame farpado, chicotes e sangue, havia sangue, um sangue que eles deixavam escorrer sem gritar enquanto eu gritava, eu gritava bem alto, eu mordia defendendo meu sangue.

A gruta é úmida escura fria. Não tenho roupa, não tenho fome, não tenho sede. Só tenho tempo, muito tempo, um tempo inútil, enorme, e este farrapo de folha de livro. Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.

Acho que não passo da lua desta noite, talvez não passe nem da chuva ou do sol abrasador que está lá fora. São muitas palavras, tantas quanto os fios de cabelo que caíram, quanto as rugas que ganhei, muito mais que os dentes que perdi. Esta coisa terrível de não ter ninguém para ouvir o meu grito. Esta coisa terrível de estar nesta ilha desde não sei quando. No começo eu esperava, que viesse alguém, um dia. Um avião, um navio, uma nave espacial. Não veio nada, não veio ninguém. Só este céu limpo, às vezes escuro, às vezes claro, mas sempre limpo, uma limpeza que continua além de qualquer coisa que esteja nele. Talvez tudo já tenha terminado e não exista ninguém mais para lá do mar mais longe que eu vejo. O mar que com este sol abrasador fica vermelho, o mar fica vermelho como aquela coisa que eu esqueci o nome, faz muito tempo. Aquela coisa que se eu lembrasse o jeito poderia ser minha matéria de salvação. Talvez olhando mais o vermelho eu lembre, o mar dilacera coisas com os dentes, enterra as unhas na areia, o mar tem aquela coisa que o príncipe também tinha, o mar de repente parece que. Não, não adianta, o vapor está subindo. Pela entrada da gruta vejo as primeiras nuvens se formando, não adianta, o mar está escurecendo, as nuvens aumentam, aumentam, é muito tarde, tarde demais. Daqui a pouco vai começar a chover .

[O Inventário do Ir-remediável]

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Do Diário de Um Homem de Letras

Que frase de Proust me ocorreu, enquanto distraidamente fazia a barba? Nenhuma, muito menos um verso de Mallarmé (preciso decorar um urgentemente, sou amigo do poeta Geraldo Carneiro e passo muita vergonha com a erudição dele). Mas aproveito que ainda não amanheceu e taco um verso - ou dois, não me lembro bem - de Byron, que decorei na remota juventude, para impressionar as moças (não impressionei, mas, quem sabe, agora talvez impressione as velhas). "Twixt night and morn, upon the horizon's verge, Life hovers like a star." "Entre a noite e a manhã, sobre a orla(1) do horizonte, a Vida paira como uma estrela." Não sei bem a que isso se aplica no momento, mesmo porque, apesar de estar tudo escuro aqui no terraço, não há nenhuma estrela à vista. Mas não fica bem para um homem de letras começar um trecho de diário sem lembrar uma frase ou verso ilustre, a reputação requer um constante burnir. Necessário achar imediatamente meus dicionários de citações, para me lembrar repentinamente de pérolas literárias e poder manter este diário. Quem pensa que a vida do homem de letras é mole está muito enganado.
Esperar clarear, para andar no calçadão. Quando me recomendou arejar o juízo andando no calçadão, meu combativo analista me disse: "Você vai fazer uma coisa que vai mudar a sua vida." Como todo mundo, principalmente escritor, quer mudar de vida, topei. De fato mudei, agora fico bestando, esperando clarear para andar no calçadão. E ando no calçadão, é óbvio, onde sou regularmente humilhado pelo capenguinha. Pensar em alguma observação inteligente para fazer a respeito disso.
Andando no calçadão. Continuo não gostando, mas creio que já posso considerar-me um veterano. Ou pelo menos não sou mais um iniciante, já tenho conhecidos e já fico de olho para a hora em que duas moças, esplêndidas como potrancas, passam em corridinha leve, com os coroas a cochichar "ai, meu tempo". E a moça de bicicleta e short meio saiote ao vento, ai meu tempo. O capenguinha, desta vez, passou na direção oposta, não houve humilhação, mas o tempo provaria que eu devia ter prestado mais atenção a seu olhar malquerente. O pessoal do programa saúde continua nos quiosques, rebatendo a noite com uma cervejinha e uns cigarrinhos. Cogito em, desta vez, encurtar a jornada, mas manda o brio que prossiga até a lata de lixo do Arpoador (haverá nisso algo de metafórico?) que marca a metade de meu percurso e, além de tudo, ia tomar um esbregue do analista. Recebo uma beijoca de uma senhora encanecida, que se confessa minha fã. Emocionado, fecho os olhos e penso que foi a moça do saiote. Agradeço penhoradamente e sigo em frente glorioso. O senhor que corre com a cara de quem acaba de perder cem mil reais no bingo me cumprimenta, o cidadão que caminha como quem está fazendo cocoricocó também. E o capenguinha, com toda a certeza só para me chatear, passa por mim. Deu a volta apenas pelo gostinho de me ultrapassar, o miserável. Mas retorno sem maiores incidentes. Ao atravessar a avenida para tornar à casa, topo com Zé Rubem Fonseca, barbado e embuçado, que finge que não me vê. Deve ter ingressado na carreira de crítico literário. Ou então deve ter acatado um conselho do analista dele. Deixo-o em paz. Mais tarde telefono e digo a ele que meu computador é maior que o dele. Isso mata o bicho.
Ler jornais. Seqüestro, estupro, bala perdida, o vírus Ebola vem aí qualquer hora dessas, tudo faz mal, morreu mais um sujeito de minha idade. Destaque para o futebol japonês, que, aliás, também aparece destacado na TV. Claro que eles serão campeões do mundo assim que entrarem numa Copa. Elementar: vão poder substituir o time inteiro o tempo todo sem ninguém notar, vai ser uma canseira geral no Ocidente. Ao diabo com os jornais, chega de assombração, vamos trabalhar, que a vida é breve.
Primeiro o expediente. Dois fax ( faxes ? Pensando bem, esqueçam que perguntei, chega de gozação com a minha condição de acadêmico). Dois esse negócio que chega pelo fio do telefone, ambos do Ministério da Cultura e ambos endereçados a João Ubaldo Ribeiro Filho. Respondo ou não respondo, já que não sou João Ubaldo Ribeiro Filho (e, aliás, prefiro João Ubaldo de Oliveira, já estou mais acostumado)? Opto por não responder, não quero assumir falsa identidade. Além disso, essa coisa de João Ubaldo Ribeiro Filho pode não cair bem com minha mulher. Fax à cesta. Que mais? Diversos convites para trabalhar de graça, como sempre. Convites à cesta. Originais que querem que eu leia. Não leio, mas não tenho coragem de atirá-los à cesta e ponho-os na pilha piramidal que já me entope o gabinete e já me rendeu ameaças de divórcio. Cartas a responder. Respondo depois.
Trabalhando em mais uma obra-prima. Quanto mais escrevo, mais difícil fica. Talvez deva dar outra andada no calçadão, antes de pegar nisso. Não, não, nada de correr da presa, ao trabalho. Além disso, como tomar um uísque escondido no Diagonal, no fim da manhã, sem muita culpa? Não, senhor, escrever. Que coisa mais besta, esta, o sujeito sentado aqui, escrevendo uma porção de histórias que nunca aconteceram, sobre gente que nunca existiu. Um amigo meu, quando me queixei, me disse que não fui eu quem inventou isso, que, desde que o homem aprendeu a escrever, escreve histórias. Ou até antes de escrever, como no caso de Homero. Portanto, não tem nada de ficar questionando, tem é de sentar aqui em frente ao monitor e mandar ver. Mando ver, saem umas mixariazinhas desconsoladas. Amanhã eu conserto, ou então depois de amanhã. Mas ninguém pode dizer que não trabalhei, Deus é testemunha. Uísque no Diagonal.
Uísque no Diagonal, na companhia de Rosa Magnólia, Zé Fuzileiro, Carlinhos Judeu, Paulinho Cachoeira, Toninho Plutônio, Tião Cheiroso, Rubem Magistrado, Geraldinho CD e outros renomados membros de minha patota. A vida é bela. Papo de alto nível, hoje versando sobre comida baiana. Saio intelectualmente renovado.
A tarde passa fugaz, abate-se o atro véu da noite sobre meu terraço. (Podia dizer que essa frase é de alguém, mas tem leitor chato que vai pesquisar e depois me escreve espinafrações.) Vou procurar os dicionários de citações. Não, não vou, amanhã eu procuro. Em lugar disso, um passatempo intelectual, digno de um homem de letras. E assim, diante do computador, clico o mouse no ícone Games e inicio uma desafiante paciência de baralho. Aquela mais difícil, que requer raciocínio, é claro.
(1) Espero a gratidão dos leitores, por não haver utilizado a palavra "fímbria".

[O texto acima foi transcrito da coluna dominical de O GLOBO/1995 e publicado posteriormente no livro "O Conselheiro Come", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 62.]

O Verbo For

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.


[Esta crônica foi publicada no jornal "O Globo" (e em outros jornais) na edição de domingo, 13 de setembro de 1998 e integra o livro "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20.]

Rondó pra você

De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente esse beijo
Tão molhado que você me dá...
Eu não queria só porquê
Por tudo quanto você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você
Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza, a faceirice,
A risada que você me dá,
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você.
Se tivesse me casado com Maria de Lourdes, meus filhos seriam dourados, uns, outros morenos de olhos verdes e eu terminaria deputado e membro da Academia Maranhense de Letras; se tivesse me casado com Marília, teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira
"...meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê..."

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Vivência

"...E, mesmo que eu te me perca, nunca mais serei aquela que se fez seca vendo a vida passar pela janela..." [Luis Kiari e Caio Soh]

"Há quanto tempo não nos vemos?". É sempre a mesma pergunta. Nunca sei responder. Realmente não sei. Mas sou capaz de lembrar de cada gesto, palavra e sensação das nossas tardes juntos. Elas ficam marcadas em meu corpo, em minha alma, em mim...

Lembro de você ter dito que eu devolvi coisas impagáveis, como o gosto pela leitura e o debate...já você, deu mais que isso- não devolveu...eu não tinha- e entre estas coisas estão o gosto pelo desconhecido e a vontade de aventurar no mundo e na vida o que até hoje só aventuro em livros.

Lembrei muito de você ontem enquanto um amigo levantava alguns questionamentos. Ele queria saber o por quê: por que não mudei para o Rio em 1998, nem para Portugal em 2001, nem para Brasília em 2009...tudo tão marcado, medido, planejado, organizado e eu desisti.

Desisti por que tinha raízes, e não asas. Não tinha curiosidade também e talvez houvesse um toque de comodismo nisso tudo. Mas algo em você me desperta e me faz ter vontade de ir, seguir, mudar, viajar- não é estranho isso de alguém dizer que você desperta a vontade de ir embora?- Mas as minhas palavras enveredam por aí mesmo: você me faz ter vontade de ver, sentir, conhecer, aprender...vontade de ser contínua.

Deixei muitas coisas inacabadas nos últimos cinco anos. Foram nossas conversas, gostos, leituras, lembranças que despertaram a necessidade de concluir, fechar ciclos. Agora tenho uma urgente necessidade de conclusão. E de vivência. E justamente por isso que sempre levarei você comigo...para que eu não esqueça novamente. Para que eu não esqueça de viver.
"...sempre desprezei as coisas mornas, as coisas que não provocam ódio nem paixão, as coisas definidas como mais ou menos, um filme mais ou menos ,um livro mais ou menos.
Tudo perda de tempo.
Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu asco, sua adoração ou seu desprezo.
O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia..."

No fundo sou sozinha.
Há verdades que nem a Deus eu contei.
E nem a mim mesma.
Sou um segredo fechado a sete chaves.
Por favor me poupe.
Estou tão só.
Eu e meus rituais.
O telefone não toca.
Dói.
Mas é Deus que me poupa.
"A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando,vou me amoldando. Nem sempre é horrível. Às vezes é até bem mansinha. Mas sinto tão estranhamente que o amor acabou. (...) Repito sempre: sossega,sossega - o amor não é para o teu bico."

"E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar".

"Malas, hotéis. E os amigos, cadê? Você foi lindo comigo. E distante. Me deu apoio, não o ombro. Queria tanto ter chorado a dor enorme de POA e a velhice de meus pais no Menino Deus no ombro de um amigo. Não temos tempo: somos maduros. Onde será que isso começa?"

"No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. e fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena."

"Acho que sou bastante forte para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente fraco para entrar."

"Quem diria que viver ia dar nisso?"

"Será que, à medida que você vai vivendo, andando, viajando, vai ficando cada vez mais estrangeiro? Deve haver um porto."

"Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada - apenas me ferem muito esses teus silêncios."

"Não é verdade que as pessoas se repitam. O que se repetem são as situações."

"Mas eu nunca quis ser gostado por aquilo que não sou ou aparento ser."

"E se é verdade que o tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem."

"Algumas vezes eu fiz muito mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia não. É verdade. Sou tão talvez neuroticamente individualista que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheio de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes firo, sou agressivo e tal. É preciso acabar com esse medo de ser tocado lá no fundo. Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso."

"Ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis."

"Meu coração tá ferido de amar errado."

"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos."

"Que te dizer? Que te amo, que te esperarei um dia numa rodoviária, num aeroporto, que te acredito, que consegues mexer dentro-dentro de mim?"

"Eu já estou tão acostumado de me contar inteiramente a alguém, tão desacreditando na capacidade de compreensão do outro."

"Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém."


[Caio Fernando Abreu: Cartas]
"- Talvez seja esse o problema. Uma vida sem manhãs. Estranho é que não escolhi. Não consigo precisar o momento em que escolhi. Nem isso, nem qualquer outra coisa, nem nada. Foram me arrastando. Não houve aquele momento em que você pode decidir se vai em frente, se volta atrás, se vira à esquerda ou à direita. Se houve, eu não lembro. Tenho a impressão de que a vida, as coisas foram me levando. Levando em frente, levando embora, levando aos trancos, de qualquer jeito. Sem se importarem se eu não queria mais ir. Agora olho em volta e não tenho certeza se gostaria mesmo de estar aqui. Só sei que dentro de mim tem uma coisa pronta, esperando acontecer, O problema é que essa coisa talvez dependa de uma outra pessoa para começar a acontecer.
- Toque nela com cuidado - disse Santiago. - Senão ela foge.
- A coisa ou a pessoa?
- As duas."

"- Você sabe que de alguma maneira a coisa esteve ali, bem próxima. Que você podia tê-la tocado. Você podia tê-la apanhado. No ar, que nem uma fruta. Aí volta o soco. E sem entender, você então pára e pergunta alguma coisa assim: mas de quem foi o erro? (...) É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido."

"Parece-me agora, tanto tempo depois, que as partidas-dolorosas, as amargas separações, as perdas-irreparáveis costumam lavrar assim o rosto dos que ficam."

"Não gosto quando a gente fica falando assim no que não foi, no que poderia ter sido. God! Não aos sábados, principalmente a noite. Não hoje, por favor, hoje não dá, eu tenho. Eu tenho uma sensação meio de amargura, de fracasso. Você me entende? Como se tivesse a obrigação de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa."

"As pessoas suportam tudo, as pessoas às vezes procuram exatamente o que será capaz de doer ainda mais fundo, o verso justo, a música perfeita, o filme exato, punhaladas revirando um talho quase fechado, cada palavra, cada acorde, cada cena, até a dor esgotar-se autofágica, consumida em si mesma, transformada em outra coisa que não saberia dizer qual era."

[Triângulo das Águas]
"Engraçado, não gosto do meu quarto - das paredes, dos móveis -, mas gosto demais das coisas que posso ver pela janela. Das coisas que estão fora dele, porque o que está aqui dentro eu acho muito parecido comigo. E eu não gosto de mim."

"A gente sempre exige mais das pessoas e das coisas que quer bem, as que queremos mal ou simplesmente não queremos ou são indiferentes."

"As coisas e as pessoas que fazem parte da minha vida vão aos poucos entrando em mim, depois de algum tempo já não sei dizer o que é meu e o que é delas. Mesmo assim, bem no fundo, há coisas que são só minhas. E embora me assustem às vezes, é delas que mais gosto. Como essa vontade de acabar com tudo, que me dá de vez em quando."

"É fácil morrer. A toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. Mais difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será."

"As palavras traem o que a gente sente."

"Há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. Eu, por exemplo. (...) Freqüentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento."

"O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele."

"Mas gosto, gosto das pessoas. Não sei me comunicar com elas, mas gosto de vê-las, de estar a seu lado, saber suas tristezas, suas esperas, suas vidas."

"Não sei como me defender dessa ternura que cresce escondido e, de repente, salta para fora de mim, querendo atingir todo mundo. Tão inesperada quanto a vontade de ferir, e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade. Mas é mais frustrante. Sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro. Sempre o mesmo círculo vicioso: da solidão nasce a ternura, da ternura frustrada a agressão, e da agressividade torna a surgir a solidão. Todos os dias o ciclo se repete, às vezes com mais rapidez, outras mais lentamente. E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim."

"Não sei se será possível à gente escolher as próprias verdades, elas mudam tanto. Não só por isso, nossas verdades quase nunca são iguais às dos outros, e é isso que gera o que chamamos de solidão, desencontro, incomunicabilidade."


[Limite Branco]
"Como chegar para alguém e dizer de repente eu te amo para depois explicar que esse amor independia de qualquer solicitação, que lhe bastava amar, como uma coisa que só por ser sentida e formulada se completa e se cumpre? Pois se ninguém aceitaria ser objeto de amor sem exigências..."

"Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites."

"Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalada."

"Era coração, aquele escondido pedaço de ser onde fica guardado o que se sente e o que se pensa sobre as pessoas das quais se gosta? Devia ser."

"Mania de esperar que as coisas sejam dum jeito determinado, por isso a gente se decepciona e sofre."

"- Podia esperar de qualquer um essa fuga, esse fechamento. Mas não em você, se sempre foram de ternura nossos encontros e mesmo nossos desencontros não pesavam, e se lúcidos nos reconhecíamos precários, carentes, incompletos. Meras tentativas, nós. Mas doces. Por que então assim tão de repente e duro, por quê?"

"- Seria isso, então? Você só consegue dar quando não é solicitado, e quando pedem algo você foge em desespero. Como se tivesse medo de ficar mais pobre, medo de que se alcance seu centro e nesse centro exista alguma coisa que você não quer mostrar nem dar ou dividir. Contido, dissimulado, você esconde essa coisa, será assim?"

"Fico pensando que nunca mais vai se repetir, é só uma vez, a única, e vai me magoar sempre."

"- Compreenda, eu só preciso falar com você. Não importam as palavras, os gestos, não importa mesmo se você continua a fugir e se empareda assim, se olha para longe e não me ouve nem vê ou sente. Eu só quero falar com você, escute. "

"É certo que as pessoas estão sempre crescendo e se modificando, mas estando próximas uma vai adequando o seu crescimento e a sua modificação ao crescimento e à modificação da outra; mas estando distantes, uma cresce se modifica num sentido e outra noutro completamente diferente, distraídas que ficam da necessidade de continuarem as mesmas uma para a outra."

"Só vou perguntar porque você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo."

"Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda."

[Inventário do Ir-remediável]
"(...) Quando passo por lá assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se não deveria retomá-la, essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora- uma tarde, noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso atá a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espião, contemplar a sacada daquele décimo andar onde costumávamos nos debruçar abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-túnel das árvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras, enfim."

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso."

"A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão."

"Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex (...) talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem junto para Paris (...) talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada"

"Vai passar,tu sabes que vai passar.Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois,quem sabe?O verão está aí,haverá sol quase todos os dias,e sempre resta essa coisa chamada¨impulso vital¨. Pois esse impulso ás vezes cruel,porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo,te empurrará quem sabe para o sol,para o mar,para uma nova estrada qualquer e,de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como "estou contente outra vez"..."

"Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consomem cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe mas foi só mais um engano? E quantos ainda restam na palma da minha mão? Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com essa fome na boca."

[Ovelhas Negras]
"Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo"

"Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não consegurás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele..."

"Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, a gente, as pessoas infelizmente têm, temos, essa coisa, as emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não te desviares demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções."

"Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez."

"Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais auto destrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia."

"Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões de meia-noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia."

"Sim, tenho vontade de me jogar pela janela, mas nunca foi possível abri-la. Não, não sei o que gostaria que você me dissesse. Dorme, quem sabe, ou está tudo bem, ou mesmo esquece, esquece."

"Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções."

"- ... Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu."

"- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem."

"Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las."

"Meus dias são sempre como uma véspera de partida."

"Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio."

"As pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem, há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis não formulados, camadas inperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem e sobretudo, como dizias, emoções que nem se mostram."

"Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma."
 
[Morangos Mofados]
"(...) Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente."

"Deixa que a loucura escorra em tuas veias,e quando te ferirem, deixe que o sangue jorre enlouquecendo também os que te feriram."

"Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo."

"Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo."

"(...) Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas as coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? dolorido-dolorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender melhor..."

"De repente,eu não conseguia ir adiante. E precisava:sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto."

[O Ovo Apunhalado]
"(...) Sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu deus como você me doía de vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meu deus mas como você me dói de vez em quando."

"Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo; repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada."

"(...) Temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias..."

"Então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és..."

"Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário."
 
[Os Dragões Não Conhecem o Paraíso]

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Mania de Explicação

Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa.

Explicação é uma frase que se acha mais importante do que a palavra.

As pessoas até se irritavam, irritação é um alarme de carro que dispara bem no meio de seu peito, com aquela menina explicando o tempo todo o que a população inteira já sabia. Quando ela se dava conta, todo mundo tinha ido embora. Então ela ficava lá, explicando, sozinha.

Solidão é uma ilha com saudade de barco.
Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue.

Lembrança é quando, mesmo sem autorização, seu pensamento reapresenta um capítulo.

Angústia é um nó muito apertado bem no meio do sossego.

Agonia é quando o maestro de você se perde completamente.

Preocupação é uma cola que não deixa o que não aconteceu ainda sair de seu pensamento.

Indecisão é quando você sabe muito bem o que quer mas acha que devia querer outra coisa.

Certeza é quando a idéia cansa de procurar e pára.

Intuição é quando seu coração dá um pulinho no futuro e volta rápido.

Pressentimento é quando passa em você o trailer de um filme que pode ser que nem exista.

Renúncia é um não que não queria ser ele.

Sucesso é quando você faz o que sempre fez só que todo mundo percebe.

Vergonha é um pano preto que você quer pra se cobrir naquela hora.

Orgulho é uma guarita entre você e o da frente.

Ansiedade é quando faltam cinco minutos sempre para o que quer que seja.

Indiferença é quando os minutos não se interessam por nada especialmente.

Interesse é um ponto de exclamação ou de interrogação no final do sentimento.

Sentimento é a língua que o coração usa quando precisa mandar algum recado.

Raiva é quando o cachorro que mora em você mostra os dentes.

Tristeza é uma mão gigante que aperta seu coração.

Alegria é um bloco de Carnaval que não liga se não é fevereiro.

Felicidade é um agora que não tem pressa nenhuma.

Amizade é quando você não faz questão de você e se empresta pros outros.

Decepção é quando você risca em algo ou em alguém um xis preto ou vermelho.

Desilusão é quando anoitece em você contra a vontade do dia.

Culpa é quando você cisma que podia ter feito diferente, mas, geralmente, não podia.

Perdão é quando o Natal acontece em maio, por exemplo.

Desculpa é uma frase que pretende ser um beijo.
Excitação é quando os beijos estão desatinados pra sair de sua boca depressa.

Desatino é um desataque de prudência.

Prudência é um buraco de fechadura na porta do tempo.

Lucidez é um acesso de loucura ao contrário.

Razão é quando o cuidado aproveita que a emoção está dormindo e assume o mandato.

Emoção é um tango que ainda não foi feito.

Ainda é quando a vontade está no meio do caminho.
Vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele.

Desejo é uma boca com sede.

Paixão é quando apesar da placa "perigo" o desejo vai e entra.

Amor é quando a paixão não tem outro compromisso marcado.
Não.
Amor é um exagero...
Também não.
É um desadoro...
Uma batelada?
Um enxame, um dilúvio, um mundaréu, uma insanidade, um destempero, um despropósito, um descontrole, uma necessidade, um desapego?
Talvez porque não tivesse sentido, talvez porque não houvesse explicação, esse negócio de amor ela não sabia explicar, a menina.
"Me comovem
Me comovem
Tuas mãos limpas
E tua boca suja"
"Eu era um sujeito perseguido pela saudade. Sempre fora, e não sabia como me desligar e viver tranqüilamente. Ainda não aprendi. É desconfio que não aprenderei nunca. Pelo menos já sei algo valioso: é impossível me desligar da memória. É impossível se desligar daquilo que se amou. Tudo isso estará sempre junto conosco. Sempre teremos tanto o desejo de refazer o bom da vida como o de esquecer e destruir a lembrança do mau. Apagar as maldades que cometemos, desfazer a recordação das pessoas que nos prejudicaram, remover as tristezas e as épocas de infelicidade. É totalmente humano, então, ser um nostálgico, e a única solução é aprender a conviver com a saudade. Talvez para a nossa sorte, a saudade possa transformar-se, de algo depressivo e triste, numa pequena chispa que nos dispare para o novo, para entregar-nos a outro amor, a outra cidade, a outro tempo, que talvez seja melhor ou pior não importa, mas que será diferente..."

[Trilogia Suja em Havana]
"...Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé — não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-de-todas-as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas..."

[Lixo e Purpurina]

sábado, 20 de novembro de 2010

"Algumas vezes eu fiz muito mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia não. É verdade. Sou tão talvez neuroticamente individualista que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheio de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes firo, sou agressivo e tal. É preciso acabar com esse medo de ser tocado lá no fundo. Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso."
"...Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos.
E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim – para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura..."
“E que seja permanente essa vontade de ir além daquilo que me espera…E que seja doce...Sempre!”
"...Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto (...) Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também..."
"...Prefiro os mais silenciosos
Os que abrem a boca de menos
os mais serenos e mais perigosos
aqueles que ninguém define
e que sempre analisam os fatos
por um novo enfoque
prefiro os que têm estoque
aos que deixam tudo à mostra na vitrine..."
Eu quero mesmo é alguém me faça mudar completamente de opinião. Que faça meu corpo querer companhia nos momentos em que minha mente insiste pela solidão.
Nesta ausência que me excita,tenho-te, à minha vontade, numa vontade infinita...
Distância, sejas bendita! Bendita sejas, saudade!
Chegue bem perto de mim. Me olhe, me toque, me diga qualquer coisa. Ou não diga nada, mas chegue mais perto. Não seja idiota, não deixe isso se perder, virar poeira, virar nada. Daqui há pouco você vai crescer e achar tudo isso ridículo. Antes que tudo se perca, enquanto ainda posso dizer sim, por favor, chegue mais perto.

Uma história confusa [Ovelhas Negras]

Entre um jogo e outro

Ter você nu na cama

que deleite.
E como a gente brinca
e rola e ri
para depois sentar
nos lençóis descompostos
o corpo ainda suado
e continuando sempre
o mesmo jogo
falar a sério
de literatura.

Te beijo no cangote
e quieta penso:
um outro amante assim
Senhor
que trabalho terias
pra me arrumar
se me tomasses este.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Namoramar

Namoramar
para seguir de mãos dadas
e projetar no futuro o presente.
Namoramar
para se sentir acompanhada
mesmo quando o outro está ausente.
Namoramar
para encontrar no amor sua casa.
Namoramar
para ter em si o aconchego que é estar
tão na-morada.

(Namoramar para desenhar sentido na rotina e descobrir no
verso seu inverso ou sua rima).
Calcinhas frouxas porque é segunda-feira, de algodão porque é terça, com a logo do time porque é quarta, de rendinha porque é quinta, comestível porque é sexta e ausente porque é sábado e se tivermos sorte ainda vai render no domingo!

Cuecas: segunda, terça, quarta, quinta, sexta ou sábado e domingo: sem estampas e limpas, por favor! Ah, e sempre!

Sutiãs: não importa, eles só vão reparar se tiverem muita dificuldade em tirá-los.

Matrioska- a primeira versão- da autora

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real. Foi de pirraça e de amor não correspondido eu ter escrito aquilo tudo. Mas saiba, eu cuidava pro meu coração não acreditar naquela raiva, você sabe, eu não sinto assim, eu não sou assim. Eu só consegui, mesmo com meu coração tão apertado, falar do amor do jeito que a gente acreditou um dia nas primeiras frases. Depois tive que escolher cada uma daquelas palavras ácidas porque não podia levar teu personagem pra guilhotina_ o protagonista não pode morrer no meio da trama. Mas eu não sabia mais o que fazer com você, eu queria desistir do teu personagem porque me doía inteira ele sendo. Escrevi desgostosa tuas desventuras, entenda, eu era a narradora onisciente, eu era deus naquela ocasião e você havia me magoado tanto na página 143.Pode parecer loucura, mas não fui eu quem escolheu você me abandonar naquele café metido à besta, nunca tomei um café que custasse tão caro só pra chorar depois em meio àquela gente cheia de pose. Não podia ser num cenário mais mal-composto. Como autora, eu pensei que pudesse ser a mulher mais incrível do livro, a mais interessante.Mas parece que teu personagem foi me dominando, querendo me magoar em público.E, quando eu achava que tinha todo o controle da situação, você me surpreendeu no final do capítulo cinco, querendo enfiar tua vida numa mochila e ganhar o mundo fora das minhas páginas. Você querendo todas as mulheres que poderiam ter sido minhas amigas. Desculpa eu ter sentido tanta raiva, mas as pessoas vivem essas coisas, até as mais espiritualizadas.Eu tive muita raiva de ser a narradora de uma história que eu não controlava mais. Você podia ter me poupado da sua autonomia, mas saiu, no meio do parágrafo, atravessando as ruas, saltando minhas vírgulas, tropeçando minhas aspas, desrespeitando meus parênteses. Eu tinha escrito uma cena na praia, no finalzinho da tarde, essas coisas que englobam uma lua inédita e cadernos espalhados em cima de uma canga colorida enquanto o casal toma um banho de mar num clima romântico.Mas a sua rebeldia me fez correr atrás de você e discutir a relação num capítulo inteiro, em cima daquela faixa de pedestre, tentando arrancar tua mochila enquanto os motoristas buzinavam furiosos por causa da baixaria debaixo do sinal vermelho-verde.Você bagunçou todo o meu roteiro.Foi por isso que dificultei a tua vida e te dei mais defeitos que charme.Eu queria ferir tua vaidade usando teu nome e sobrenome verdadeiros para que não houvesse dúvidas de que era sobre você que eu estava falando.E soterrei todas as suas qualidades naquele bloco de texto.Foi por isso que meu final feliz incluiu um casamento com um diplomata que não era você, no mesmo dia em que te fiz perder o avião pra Londres.

Eu omiti que ia publicar um livro com a nossa história real porque eu não queria que você descobrisse, antes da primeira edição esgotada, que a tua crueldade ia me render um best-seller.
Sou composta por urgências: minhas alegrias são intensas, minhas tristezas, absolutas. Me entupo de ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos. Eu caminho, desequilibrada, em cima de uma linha tênue entre a lucidez e a loucura. De ter amigos eu gosto porque preciso de ajuda pra sentir, embora quem se relacione comigo saiba que é por conta-própria e auto-risco. O que tenho de mais obscuro, é o que me ilumina. E a minha lucidez é que é perigosa (como dizia Clarice Lispector). Se eu pudesse me resumir, diria que sou irremediável!
"Ele não me faz feliz: eu jamais lhe daria tamanha responsabilidade. Ele agrega alegria à felicidade que eu conquistei pra mim."

Altar Particular [Maria Gadú]

Meu bem, que hoje me pede pra apagar a luz
E pôs meu frágil coração na cruz
Do teu penoso altar particular
Sei lá, a tua ausência me causou o caos
No breu de hoje, sinto que
o tempo da cura tornou a tristeza normal
Então, tu tome tento com meu coração
Não deixe ele vir na solidão
Encabulado por voltar a sós
Depois, que o que é confuso te deixar sorrir
Tu me devolva o que tirou daqui
Que o meu peito se abre e desata os nós

Se enfim, você um dia resolver mudar
Tirar meu pobre coração do altar
Me devolver como se deve ser
Ou então, dizer que dele resolveu cuidar
Tirar da cruz e o canonizar
Digo, faço melhor do que lhe parecer
Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor
Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou com tudo a flutuar no rio
Esperando a resposta ao que chamo de amor
Estou com tudo a flutuar no rio
Esperando a resposta ao que chamo de amor
Estou com tudo a flutuar no rio
Esperando a resposta.

Cantada por Maria Gadú.

A tristeza é feia e quer casar [Silmara Franco]

Está no dicionário: Tristeza: [Do lat. tristitia.] S.f. 1. Qualidade ou estado de triste. 2. Falta de alegria. 3. Pena, desalento, consterna...