Está amanhecendo. Não, talvez esteja anoitecendo. Impossível dizer baseado apenas nessa luz nem clara nem escura, suspensa na atmosfera, uma luz que não vem de nada visível, nem de sol nem de lua. Uma luz como essa que costumamos dizer de “um dia sem luz”. Erradamente, pois embora invisível, indefinida, a luz está lá. Sob uma luz dessas, ao ar livre, você está sentado. Não sei se na transição do dia para a noite, da noite para o dia, e nem mesmo se em algum outro tempo no meio da manhã ou da tarde. No meio da noite, não, porque seria escuro, e essa luz — a do escuro, a da nãoluz — é reconhecível. Mas ela não importa, a luz, seja qual for. Nem importa você estar sentado, em pé ou mesmo deitado. Importa você estar lá. Importa, quero dizer, no que escrevo agora, no que imagino, e não sei ainda direito o que é.
Você está lá. Há aquela luz à sua volta. Não posso descrever seus traços, nem mesmo dizer se é homem ou mulher, vejo apenas um vulto. E sei, mas não sei por que sei, que trata-se de um espaço aberto. Como a plataforma de uma estação. Perto de você há vultos menores, quadrados, retangulares. Parecem malas, bagagens. Sei que são objetos porque não se movem, enquanto você às vezes dá alguns passos, abre ou estende os braços. Imagino então assim: você é alguém que vai viajar para longe, ao amanhecer. Eu poderia até afirmar isso, e ninguém duvidaria, não só porque sou dono e soberano de minha própria imaginação, mas porque é exatamente isso o que imaginaria qualquer um que entrevisse o mesmo que entrevejo. O problema para descrever é esse: apenas entrevejo.
Apenas entrevendo, continuo a entrever.
Não há mais ninguém nessa estação. Ou por algum motivo não entrevejo os outros que talvez estejam também lá, apenas você, num zoom seletivo que exclui os demais. E por se tratar de uma estação, deve haver um trem que não chega, não passa nem parte. O que passa é apenas o tempo. Sei que passa não porque a luz se modifique ou aconteça alguma coisa, mas pelos seus pequenos movimentos, um passo, um braço, que revelam ansiedade e espera. O que se pode fazer numa situação como essa — mesmo para mim, que deveria ser o dono dela, mas me recuso — a não ser esperar? Esperamos, todos. O que está lá, o que conta sobre isso e os que lêem sobre isso. Esperamos então. Horas, dias, meses, anos e anos. Ninguém sabe o quanto. Podemos nos distrair enquanto esperamos, ligar o rádio, olhar pela janela, abrir a geladeira, mastigar alguma coisa, beber mais água neste dia seco, até mesmo ligar a TV para entrar noutras histórias, falsas ou verdadeiras, mas onde aconteçam coisas, em vez de ficarmos parados nesta onde nada acontece desde as primeiras palavras. E voltar a ela como quem volta a chamar um número de telefone eternamente ocupado, só para constatar que continua ocupado e apenas para ter a sensação de não desistir. Desistir não é nobre. E arduamente, não desistimos.
Então acontece. É tão surpreendente que aconteça que pouco importa seja a única coisa que poderia acontecer. O trem chega e pára. Na plataforma você começa a tentar colocar as bagagens dentro dele. Mas elas não saem do chão. O trem apita, o trem vai partir. Você percebe que não pode levar nada além de você mesmo. E entra no trem. Mas isso que você tenta fazer entrar no trem, e que é o seu corpo, também não pode entrar.
Então você o deixa, deixa o vulto que entrevejo jogado na estação junto com as bagagens. O trem então parte levando de você algo que nem você nem eu sequer conseguimos entrever. Outra coisa, talvez nada, porque nada podemos garantir ter visto partir dentro do trem.
Você não grita nem acorda. Não há terror, mesmo sendo aterrorizante: é assim que é. E pior ainda, não se trata de um sonho. Começa a amanhecer. Ou a anoitecer. Ninguém sabe quando passa o trem. Nem para onde vai. E não se leva nada. Isso é tudo que sabemos.
O Estado de S. Paulo, 12/11/1995
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