domingo, 14 de novembro de 2010

Calamidade Pública

Ah, querida e heavy Sampa: a feiúra desabou sobre você como uma praga bíblica...
Nunca na minha vida casei, mas — imagino — minha relação com São Paulo é igual a um casamento.
Atualmente, em crise.
Como conheço bem esse laço, sei que apesar das porradas e desacatos, das queixas e frustrações, ainda não será desta vez que resultará em separação definitiva.
No máximo, posso dormir no sofá ou num hotel no fim de semana, mas acabo voltando.
Na segunda-feira, volto brava e masoquistamente, como se volta sempre para um caso de amor desesperado e desesperançado, cheio de fantasias de que amanhã ou depois, quem sabe, possa ter conserto.
Este, amargamente, não sei se terá.

Porque está demais, querida Sampa.
E sempre penso que pode ser este agosto, mês especialmente dado a essas feiúras, sempre penso que pode ser o tempo, tão instável ultimamente, sempre penso que pode ser qualquer coisa de fora, alheia à alma da cidade — para que seja mais fácil perdoar, esquecer, deixar pra lá.
Não sei se é.
As calçadas e as ruas estão esburacadas demais, o céu anda sujo demais, o trânsito engarrafado demais, os táxis tão hostis a pobres pedestres como eu...
Cada vez é mais difícil se mexer pelas ruas da cidade — e mais penoso, mais atordoante e feio.

Feio é a palavra mais exata.
A feiúra desabou sobre São Paulo feito as pragas desabavam dos céus, biblicamente.
Uma feiúra maior, mais poderosa e horrorosa que a das gentes, que a das ruas.
Uma feiúra que é talvez a soma de todas as pequenas e grandes feiúras aprisionadas na cidade, e que pairam então sobre ela, sobre nós, feito uma aura.
Aura escura, cinza, marrom, cheia de fuligem, de pressa, miséria, desamor e solidão.
Principalmente solidão, calamidade pública.

Fico fazendo medonhas fantasias futuristas.
Lá pelo ano 2ooo, pegue Blade Runner, elimine Harrison Ford e empobreça mais — muito, muito mais —, encha de mendigos morando pelas ruas.
Encha com gangs de pivetes armados até os dentes, assaltando e matando, imagine incêndios incontroláveis, edifícios abandonados ocupados por multidões sem casa.
Por sobre tudo, espalhe um ar irrespirável, denso de monóxido de carbono, arsênico e sei lá quais outros venenos que li outro dia no jornal que o ar de São Paulo tem.
Nem luz nas lâmpadas, nem água nas torneiras.
E filas — muito maiores que essas de agora — para conseguir leite, carne, pão, arroz, feijão.
Imagine em cada figura cruzada em cada esquina a possibilidade de um assassino.
E em cada olhar mais demorado a sombra da morte, não do encontro ou da solidariedade.

Ah, heavy Sampa...
Vacilo um pouco em fazer aquela linha clamar-aos-poderes, pedir a ação da prefeitura e dos políticos.
Pela minha cabeça passa, intuitiva e espontaneamente, que tudo só pode ficar pior, à medida que o século e a miséria avançarem.
E, se vocês elegerem Maluf para governador, juro: mudo de cidade.
Acabo de vez este casamento, porque acredito ainda em certas coisas bem limpinhas que quero preservar em mim.
E isso eu não vou permitir, querida Sampa: que nenhuma cidade, pessoa ou instituição acabe com essas coisas muito clarinhas e muito limpinhas (talvez por isso meio bobas, mas que se há de fazer? São elas que me mantêm vivo) resistindo aqui dentro de mim.

Antes de ficar feio, violento e sujo feito você anda, peço o desquite.
Litigioso, aos berros.
Vou pra não voltar: falar mal de você na mesa mais esquecida daquele canto mais escuro e cheio de moscas, no bar mais vagabundo do mais brega dos subúrbios de Asunción, Paraguai.


O Estado de S. Paulo, 20/8/1986

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