terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Fio da Meada

A primeira vez que a vi eu estava no fundo do poço. Sentia-me mal, deprimida, não enxergava solução alguma para meus problemas e pensava até em fazer o tal concurso para o Banco do Brasil (Salve Caio Fernando Abreu). Eu estava ruim mesmo. Já sentiu como se você fosse a pessoa mais azarada, triste e desgraçada do mundo? Eu já. Sei exatamente o que é sentir-se a pessoa mais azarada, triste e desgraçada do mundo. Então decidi vê-la. Seria minha última tentativa antes de entregar-me à bebedeira e à luxúria desgarrada. Quisera eu ter feito isso ao invés daquilo. Percebo agora que o homem perde tudo quando deixa para trás seus princípios. Os meus nunca foram tão virtuosos. Eu queria viver, aborrecer, usar, esbanjar, envelhecer e, finalmente, me tornar adubo para uma árvore frondosa. Todo cemitério tem árvores. Eu havia perdido todas as esperanças. Fugi de todos os ensinamentos da igreja. Mas eu não estava procurando o diabo. Ele já estava comigo. E não era uma tentativa de entrar no inferno. Era apenas um pontapé para chegar mais rápido. Uma coisa é certa: Se me apego ao que aprendi desde criança não saio mais de casa. Todo dia é uma prova de que me deram o mundo todo torto e enfeitado pela visão católica das coisas. Cresci assim: Católiquinha, menininha, medrosinha e uma grande abobrinha que pensava muito em sexo. E, por falta de visão, acredito eu, calcei sapato e fui dar com ela. Encontrei o cartão dentro de um livro, telefonei e marquei hora. E fui. Ao chegar ao local, senti que talvez fosse hora de voltar, desistir, buscar outro caminho. Talvez fosse hora de me tornar crente do tipo que nem assiste TV porque é pecado. Mas eu já estava ali, frente à casa, que era amarela e azul, portões grandes, carro na garagem, jardim imenso cheio de damas da noite, jasmim, petúnias, cães, pássaros e havia enormes janelas e eu não poderia mais voltar. Eu havia me tornado o que anda na boca do povo. Uma versão moderna de Macabéa (Pessoas gostam de Macabéa só por que Clarice disse não gostar? Pessoas gostam de Macabéa por que é o personagem mais famoso de Clarice? A nordestina desgraçada faz sucesso porque é feia, desconcertante, triste e todo mundo adora dizer que entende personagem complexo. Mas ela não é complexa. É apenas uma mulher que sofre e morre no final das contas). Eu penso demais. Este é meu problema. E, por causa deste pensar é que estou aqui de cara com a casa da mulher que provavelmente vai falar muita bobagem e vou sair daqui me sentindo pior do que cheguei. Campainha, empregada, sala, mulher de vestido longo e sorriso bem grande, pergunta meu nome, vai lá dentro fazer não sei o que e volta. Aí ela abre a boca:

― Você é de peixes. Tem um filho. Está sofrendo. Seu pai bebia e você foi criada por freiras enquanto sua família se refazia. Você casou. Mas não foi feliz. Vejo um amante. Sim, você teve um amante. Homem forte, porém não a satisfez. Você é compenetrada e gosta muito de ler. É muito sábia.

Espantada, eu a segui por um imenso corredor e chegamos a seu consultório esotérico. A mulher, que cheirava à lavanda em excesso, me mandou sentar, sentei, disse para eu me concentrar, me concentrei, pegou um monte de cartas, abriu tudo em leque e me mandou escolher algumas. Prontamente eu escolhi as cartas e ela foi falando o que via.

― Vejo um homem forte.

― Forte Forte ou forte forte?

― Vejo que este homem está no seu caminho.

― E de que lado ele vem?

― Você ainda não o conhece.

― Rico?

― Muito.

― Poxa... Eu não queria homem rico.

― Espera. Eu vejo. Ele entrou em processo de falência. Virá até você e pedirá ajuda.

― Pobre assim? Não quero homem dependente de mim, não.

― Vejo que ele pedirá seu amor. Não é por dinheiro.

― Entendo.

― Mas não espere grande coisa. Tenha paciência com a vida. Tudo vai se ajeitar.

― Entendo de novo.

― E há um bom emprego esperando por você.

― Entendo mais uma vez.

Entendi tanto que acabei encontrando o fio da meada. A tal mulher falava exatamente o que eu esperava ouvir. E como é bom ter alguém que trace sua vida através de cartas de tarô e diga que tudo será perfeito. E a mulher continuou a ladainha e eu passei a sentir medo porque, além de cartomante, a mulher era vidente de situações passadas. Como ela poderia saber tanto de mim se mal abri a boca. Eu apenas disse meu nome completo. Só o nome. O nome completo. Um sino de proporções devastadoras soou dentro de minha cabeça. O sino badalava Google, Google, Google. Assim, bem alto. Aí ouvi um click que clica na mente de gente burra como eu. Basta digitar seu nome no Google que sua vida pode (ou não) aparecer num piscar de olhos. Não existe mais essa história de segredo. Todo mundo sabe de todo mundo. Arrasada, voltei para casa. Não fui atropelada, Clarice. Rindo-me de mim, pensei: Quando foi que me tornei tão medíocre?

O tempo passou e nunca mais vi a cartomante. A depressão sumiu. Fiz concurso, tenho emprego e estou bem. Ou quase bem. E foi preciso que eu pagasse 80 pratas de meu bolso furado para saber que vida é traça, que nada é mágica e que de mim, ilusoriamente, cuido eu.


Texto de Letícia Palmeira.
Disponível aqui ó.

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