terça-feira, 31 de julho de 2012

Sermão do Mandato


Pinta-se o amor sempre menino porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade de uso da razão. Usar da razão e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febriciante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos.E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor é cegar o entendimento, daqui vem que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, é amante; quem ama, porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinqüente; quem ignorando amou, em rigor, não é amante.

[Padre Antonio Vieira]

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Trecho do livro 'Nas Tuas Mãos'

A tua cabeça rodou na direcção do meu rosto, os teus olhos fecharam-se e a tua boca avançou para a minha, através de uma lenta rota de luz, risos e lágrimas. Quando os teus dentes morderam os meus lábios alguém gritou "Bravo!" como na ópera e eu soube que nunca uma rapariga havia sido assim amada."Espere", dizias tu, "connosco há-de ser diferente." Travavas-me o corpo todo com um beijo na palma da mão, os meus dedos agarravam-se, entontecidos, à curva funda das tuas pálpebras, e desse canto macio de pele eu inventei um homem para sonhar até ao dia branco da nossa eternidade. António. Dou-te esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade.

António. Muito prazer. Chamo-me António José Castro Morais mas toda a gente me trata por Tó Zé. Raptaste-me ao terceiro dia: "Jennifer. Diga à sua mãe que hoje está muito cansada para passear e venha comigo ver a vida verdadeira." O meu nome é Jenny, porque o pai que eu não cheguei a conhecer adorava a heroína da Família inglesa do Júlio Dinis, uma família aliás semelhante à nossa no culto discreto da riqueza como prolongamento físico da solidez espiritual. Mas tu, António, preferias outra coisa. Eu restituía-te o nome de origem, nem sequer era capaz de pronunciar esse diminutivo portátil que te fazia de toda a gente, e tu inventavas-me para lá do livro de onde eu tinha saído.

Naquela época parecia-me que estas intenções contrárias eram a mesma, um código de segredo automático que escrevia a grande evidência do amor. Só na noite do nosso casamento descobri que havia outra pessoa que te soletrava António, querido. Meu querido. Cuidado. É o auge do sol e todas as formas da montanha se rendem ao totalitário peso da luz. Vais andando, com os binóculos apontados ao mais longínquo dos cumes, e de repente vejo o teu pé direito no ar, sobre o precipício. Grito cuidado e abraço-te pelas costas, cais sobre mim no alto de Meteora. Pões um braço sob a minha cintura, e a tua face recortada a contraluz rasga-me com a insuportável beleza de uma aparição. "Como te chamas, anjo da guarda?" Foi a única vez em que me trataste por tu.

Fizeste o resto da viagem connosco, nesse Verão de 1935. Vinhas dos Mosteiros do Monte Athos, onde nem a sombra de uma mulher se permite, nós vínhamos da desilusão de Atenas, que a minha pobre mãe definia incessantemente como "a viúva alegre dos Deuses", para dar a entender que era culta, mordaz e muitíssimo viúva. Não me lembro de nenhuma das másculas estátuas dos museus de Salónica, apenas manchas de mármore sobre as quais os teus dedos evoluíam, longos, quase impudicos pela transparência dos ossos e das unhas. Esse fascínio pelos teus dedos valeu-me meia dúzia de vitórias ao gamão, no dia em que me levaste às escondidas a ver a vida verdadeira nas sombras sumptuosas das igrejas ortodoxas e nos cafés do cais, povoados de velhos marinheiros gregos com gestos muçulmanos. Expli-cavas-me as regras mas eu não conseguia ouvir-te, embrulhava-te a voz na velocidade das palavras e na cor incerta da íris, quando sorrias era verde-clara e depois tornava-se castanha, o nariz afilado, perfeito e imóvel como uma decisão, a boca excessiva destoando, lábios grossos com os cantos virados para baixo como uma permanente trincheira de desconfiança.

Nunca fui de falar muito. A minha mãe reforçava convenientemente a minha incomunicabilidade doutrinando-me na lei da poupança verbal: uma ideia, meia palavra. Seguia-te desesperadamente o trilho dos dedos sobre as peças de madeira para que me julgasses inteligente, capaz de te vencer. Nunca mais voltaria a ganhar-te.

Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo, mas nesses anos entre guerras os sentimentos explicados não interessavam a ninguém. O amor era então uma criação fulminante do tédio e da inocência, feito do carnal recorte da beleza, magnífico de crueldade. Amei-te de repente, com a luminosa injustiça que me afastou de todos os que me amaram por me serem semelhantes. Amaram-me ainda mais depois, durante

o nosso longo noivado, que me tornou mundana, e adoraram-me a partir do dia em que me fiz oficialmente tua mulher, ouvia-os sussurrar que estranho, está cada vez mais menina, nunca se viu um caso assim.

Namorámos em bailes e recepções, eu dava-te a mão e o Pedro pegava-me logo na outra mão, sentia a inveja alastrando pelos salões como um perfume sensual, eram meus os dois rapazes mais desejados de Lisboa. Talvez não fossem sequer excepcionalmente bonitos. Quando agora olho tranquilamente para as fotografias da vossa juventude, vejo dois rapazes elegantes procurando atenuar pela distinção dos adereços — os chapéus de aba larga, os foulards de seda lavrada, os coletes italianos, os casacos de ombros largos — certas irregularidades de formas e traços. Eram magros, o Pedro ligeiramente mais alto do que tu e quase macilento.

Apareciam sempre juntos e nunca demoravam o olhar sobre uma mulher. Falavam de pintura, literatura, viagens, aborreciam a política e os negócios. A combinação entre esses interesses tão raros nos homens do tempo e a vossa suave indiferença às afectações da beleza feminina tornava-vos irresistíveis. Criava-se um zumbido abrasador à vossa entrada, as raparigas apertavam os pulsos umas às outras e segredavam: "Olha o sol e a lua." Tu, meu querido António, eras a lua intrigante — apesar do teu cabelo aloirado e do teu passo bem mais decidido do que o do Pedro. Ele era o sol de melena escura que sorria continuamente só para encandear. Havia também uma espécie de esplendor circulando em torno dos dois que se extinguia quando se olhava para cada um de vós, individualmente.

Tu tinhas para mim uma cintilação própria, António, irradiavas uma luz turva, arroxeada, que me sacudia como uma onda de febre. Seguia os teus passos mecanicamente, enquanto dançávamos. Não conseguia ouvir a música; quase desmaiava de embaraço e prazer escutando a batida do sangue, atroadora, hipnótica, nunca soube se do teu se do meu coração. Ninguém antes te vira dançar.

As raparigas rodeavam-me, em enxames, perguntando que bruxedo te fizera eu. As mais afoitas delas, segundo me contaram, tinham tentado vezes sem conta rodopiar nos teus braços ou nos do Pedro, em vão. Cansei-me de vez das conversas de raparigas, nunca tive uma melhor amiga. A cumplicidade de condição parecia-me quase vergonhosa, conhecia-as demasiado bem do colégio, onde a minha mãe me internara durante cinco anos para me "instruir e disciplinar", à maneira inglesa que herdara dos pais dela.

Creio que nunca me recompus dos risinhos da Vera no refeitório, antes do Pai-Nosso da manhã, "sonhei que estava na cama com o Salazar, ai, meninas, acho que estou a precisar de me casar." Quase todas recebiam cartas de amor com assinaturas femininas, "minha estremosa amiga, olha esta noite para a lua às nove e meia que eu vou estar a olhar também. Tua muito saudosa Alexandra", e as freiras que tudo liam não estranhavam estes arroubos entre meninas, nunca lhes ocorria que eram os meninos do Colégio Militar quem escrevia as cartas assinadas por Alexandras e Paulas e Júlias.

Fardas, as pessoas apaixonavam-se umas pelas outras através do interdito das fardas. Eu tinha um pai morto cheio de condecorações no peito, um pai que morrera sem me ver, em 1917, a bem do futuro de uma Europa inexistente. Tu vestias linho branco ou flanela cinzenta, substituías quase sempre a gravata por lenços de seda que me punham tonta, sôfrega do teu pescoço alto de rapaz.

Ninguém sabia bem de que vivias, viajavas muito, negócios, dizias, e mudavas rapidamente de assunto. A minha mãe desvanecia-se com isso a que chamava pudor, um noivo que se apresentava de chaperon e não exibia os seus dotes profissionais era um prodígio. "Nem percebo o que é que um rapaz tão exquisite viu em ti", disse-me ela, uma vez, no tom de brincadeira que usava para as verdades mais sentidas. Arranjava sempre maneira de meter uma ou duas palavras em inglês em cada frase, e exquisite era uma das suas favoritas. No dia do nosso casamento passou a tratar-te por tu e a dar-te abraços maternais. Perguntou-te se estavas mesmo disposto a fazer felizthis little lady e tu res-pondeste-lhe em alemão. Se fosse eu, chamar-me-ia atrevida, e havia de amuar de humilhação.

A minha frágil mãe não admitia que o saber alheio a suplantasse, e, aliás, garantiu que eu lhe ficasse sempre atrás. "Dá cá isso, eu faço, tu não és capaz." O estribilho repetia-se sempre que eu tentava fazer alguma coisa nova; foi quase à revelia dela que aprendi a tocar piano, "larga isso, criança, ainda me desafinas o piano, julgas que podes tapar a tua falta de técnica com a fúria", para ela a fúria era uma prerrogativa de criadores. Já estávamos casados há vários meses quando tu disseste: "Você é tão intensa, Jennifer, nunca supus que uma mulher pudesse ter tanta intensidade." Foi talvez o maior elogio que recebi de ti, e as hostilidades entre mim e a minha mãe terminaram nesse instante. A minha fúria era afinal um dom, a virtude que te levara a escolher-me como única mulher da tua vida, herdeira do teu nome, senhora de tudo o que era teu.

O Pedro gostava de me escovar os cabelos devagar antes de me fazer as tranças, tu querias ver-me sempre de tranças e laços. Nas repetidas escapadelas do Pedro eu subia a bainha aos vestidos brancos de bordado inglês, punha soquetes e aninhava-me ao teu colo, tu acariciavas-me o rosto, as mãos, as pernas. Uma vez chegaste a deitar-me no chão e encheste-me o peito de dentadas e lágrimas, estiveste quase a possuir-me e depois pediste desculpa, eu disse-te "vem para dentro de mim, não tenhas medo", e tu disseste: "Não posso, meu anjo. Não seria justo para si. Eu sou dele, Jennifer. Se quiser, abandone-me."

O abandono não é um acto de vontade mas uma consequência do esquecimento, meu amor. Se amasses outra mulher, o meu orgulho traído encontraria forças para deitar pazadas de terra sobre o buraco escuro do meu peito. Mas o teu amor proibido empurrava-te para o limbo trágico onde o meu amor por ti estava afinal condenado a viver. Nem por um segundo me ocorreu desfazer o nosso casamento. No entanto, preciso de te dizer que existiu mais do que pura paixão e livre entendimento na minha decisão de permanecer contigo para sempre. Houve também altivez, querido António. Não suportaria o desolado desprezo da minha mãe, nem o riso das zumbidoras. A mágoa do teu desamor tornava-me incapaz de encarar semelhantes afrontas. A pouco e pouco, desenvolvi a capacidade de me cingir à felicidade essencial de ser a tua mulher. Tu, que nem sequer olhavas para uma mulher, tinhas-me escolhido para viver ao teu lado uma vida inteira. O sexo que eu desconhecia não podia roubar-me o êxtase desta aventura. Permaneceria tua namorada, cúmplice do teu amante.

Segundo a Camila, o amor desesperado faz mal à pele, desfigura e amarelece-nos os contornos, mas connosco nunca, António. O desespero punha-te o fulgor do oiro, acho mesmo que te transfiguraste no dia em que a Camila apareceu."Como pudeste trair-me tanto, Pedro?" Choraste nos braços dele a noite inteira, aos poucos ele convenceu-te a aceitá-la, ofereceu-ta entre pe didos de perdão e juras de amor. Assim me deste a filha que me impediu de enlouquecer.

Nesses anos em que o amor todo se concentrava na feroz atracção dos corpos, podia-se viver uma vida só do sabor de uns lábios. Eu, pelo menos, vivi.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O ventre seco

1. Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.

2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se, por sinal), me ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu corpo, tentou me arrastar pra lugares a que acabei não indo, e, não fosse minha feroz resistência, até pessoas das tuas relações você teria dividido comigo. Não quero discutir os motivos da tua generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar: "você não tem o direito de fazer isso". Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.

3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer proselitismo.

4. E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho nada contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas que "estão varrendo as bestas do caminho". E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero dizer simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído de jovens como você. Que tanto falam em liberdade? É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar.

5. Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você me atirou um desdenhoso "velho" na cara. Nunca te disse, te digo porém agora: me causa enjôo a juventude, me causa muito enjôo a tua juventude, será que preciso fazer um trejeito com a boca pra te dar a idéia clara do que estou dizendo? É bastante tranqüilo este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me doem os cotovelos. Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir gentes maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.

6. Você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a exemplo do bom senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo. Aliás, só mesmo uma perfeita distribuição de afeto poderia explicar o arroubo corriqueiro a que todos se entregam com a simples menção deste sentimento. Um tanto constrangido por turvar a transparência dessa água, há muito que queria te dizer: vá que seja inquestionável, mas tenho todas as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor.

7. Farto também estou das tuas idéias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma suposta fé na "ordem", afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé.

8. Você pode continuar falando em nome da razão, Paula, embora até o obscurantista, que arranja (ironia!) essas idéias, saiba que a razão é muito mais humilde que certos racionalistas; você pode continuar carreando areia, pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora qualquer criança também saiba que é sobre um chão movediço que você há de erguer teu edifício.

9. Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este "velho obscurantista", nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos, encontre um lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida.

10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê do desenhista que ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno, me mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se era agravo ou elogio), você deixou escapar a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.

11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.

12. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro.

13. Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho.

14. Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas muito, mas muito cansado, Paula. (Teu baby-doll, teus chinelos, tua escova de dentes, e outros apetrechos da tua toalete, deixei tudo numa sacola lá embaixo, é só mandar alguém pegar na portaria com o zelador.)

15. Ainda: "a velha aí do lado", a quem você se referia também como "a carcaça ressabiada", "o pacote de ossos", "a semente senil" e outras expressões exuberantes que o teu talento verbal sempre é capaz de forjar mesmo para falar das coisas mirradas da vida, nunca te revelei, Paula, te revelo agora: "aquele ventre seco" é minha mãe, faz anos que vivemos em kitchenettes separadas, ainda que ao lado uma da outra. Não seja tola, Paula, não estou te recriminando nada, sempre assisti com indiferença aos arremedos que você fazia da "bruxa velha, preparando a poção pra envenenar nossas relações". Te digo mais: você talvez tivesse razão, é provável que ela vivesse a espreitar minha porta das sombras da escadaria, é provável que ela do fundo dos corredores te olhasse "de um jeito maligno", é provável ainda que ela, matreira dentro do seu cubículo, te alcançasse todas as vezes que você saía através do olho mágico da sua porta. Mas contenha, Paula, a tua gula: você que, além de liberada e praticada, é também versada nas ciências ocultas dos tempos modernos, não vá lambuzar apressadamente o dedo na consciência das coisas; não fiz a revelação como quem te serve à mesa, não é um convite fecundo a interpretações que te faço, nem minha vida está pedindo esse desperdício. Quero antes lembrar o que minha mãe te dizia quando você, ao cruzar com ela, e "só pra tirar um sarro", perguntava maliciosamente por mim, te sugerindo eu agora a mesma prudência, se acaso amanhã teus amigos quiserem saber a meu respeito. Você pode dispensar "a ridícula solenidade da velha", mas não dispense o seu irrepreensível comedimento, responda como ela invariavelmente te respondia: "não conheço esse senhor".

[Extraído do livro ""Menina a caminho", Companhia das Letras – São Paulo, 1997, pág. 61.]

Deverias

Deverias não a conhecer e tê-la encontrado por toda a parte ao mesmo tempo, num hotel, numa rua, num comboio, num bar, num livro, num filme, dentro de ti, em ti, ao acaso do teu sexo erguido na noite que procura um lugar onde se meter, onde se libertar do choro que o enche.

Aos dezoito anos era já tarde demais

Muito cedo na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Chama-se a isto ser mulher

Estava a arrumar roupa e a pôr de lado algumas coisas para dar quando bati com os olhos num vestido. Já o estava a meter no saco das doações quando me lembrei que aquele era o vestido que eu estava a usar na noite em que conheci o meu homem. Já não o visto há algum tempo, já não lhe acho particular graça, mas decidi guardá-lo na mesma. Um dia, se tivermos filhos, o homem vai contar-lhes a história da noite em que nos conhecemos. E vai dizer que eu estava a usar um lindo vestido verde, como diz sempre. E é nessa altura que eu vou saltar para a frente dele com o vestido na mão e gritar "É AZUL! O VESTIDO É AZUL!". Os putos vão achar que eu sou louca, mas ao menos vou ter como provar que eu é que tenho razão. E, no fim das contas, é isso que interessa.

Disponível aqui ó...

Solidão

Não venha roubar minha solidão, se não tiver algo mais valioso para oferecer em troca.

Sensível demais

Eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais...

Para todo fim, um recomeço

É loucura odiar todas as rosas porque uma te espetou. Entregar todos os teus sonhos porque um deles não se realizou, perder a fé em todas as orações porque em uma não foi atendido, desistir de todos os esforços porque um deles fracassou. É... loucura condenar todas as amizades porque uma te traiu, descrer de todo amor porque um deles te foi infiel. É loucura jogar fora todas as chances de ser feliz porque uma tentativa não deu certo. Espero que na tua caminhada não cometas estas loucuras. Lembrando que sempre há uma outra chance, uma outra amizade, um outro amor, uma nova força. Para todo fim, um recomeço.

[Antoine de Saint-Exupéry]

Eu acredito em você

E sim, você consegue aconchegar minha tristeza nessa sua linda alma brasileira, meio dramática, meio dolorosa, extremamente chorosa, mas de uma inefável doçura. Eu acredito em você, só duvido de vez enquanto, mas sim, eu acredito em você, vai passar, mesmo que dure uma eternidade.

Ilusões

Cuidado com as ilusões, mocinha, profundas e enganosas feito o mar. Engole teu coração.

Preciso

Você tem alguma receita pra gente mudar de vida? E pra tomar decisões? E para mudar de personalidade? E para flagrar-se? E para pagar o karma em suaves prestações? E pra desorientação aguda, você tem? Se tiver, me passa que eu preciso.

A vida é incontornável

A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói, ai, dói demais. Mas passa. Está vendo essa dor que agora samba no seu peito de salto agulha? Você ainda vai olhá-la no fundo dos olhos e rir da cara dela. Juro que estou falando a verdade. Eu não minto. Vai passar.

O correspondido

Se me perguntarem qual o sentimento que considero mais bonito ou mais importante, vou abrir um sorriso e dizer: O correspondido.

A gente simplesmente supera

Bonito mesmo é, essa coisa da vida: Um dia, quando menos se espera, a gente simplesmente supera.

Tenho só um mundo pela frente

Me dei mal, meu bem, ninguém escapa. Mas o bom disso tudo é que agora consigo abrir meu coração sem rodeios. Sim, amei sem limites. Dei meu coração de bandeja. Sonhei com casinhas, jardins e filhos lindos correndo atrás de mim. Mas tudo está bem agora, eu digo: agora. Houve uma mudança de planos e eu me sinto incrivelmente leve e feliz. Descobri tantas coisas. Existe tanta coisa mais importante nessa vida que sofrer por amor. Que viver um amor. Tantos amigos. Tantos lugares. Tantas frases e livros e sentidos. Tantas pessoas novas. Indo. Vindo. Tenho só um mundo pela frente. E olhe pra ele. Olhe o mundo! É tão pequeno diante de tudo o que sinto. Sofrer dói. Dói e não é pouco. Mas faz um bem danado depois que passa. Não dá mais para ocupar o mesmo espaço. Meu tempo não se mede em relógios. E a vida lá fora, me chama.

Aprendi a ter uma enorme admiração por mim mesmo.

Fui vivendo minha vida de maneira tão solitária, conquistando minhas coisas tão no braço, tão sempre sem nada, que aprendi a ter uma enorme admiração por mim mesmo.

Honestidade

O segredo do sucesso é a honestidade. Se você conseguir evitá-la está feito!

segunda-feira, 9 de julho de 2012

As palavras não faziam falta

Não falaram muito, quase nada. Ou nada. Ela fechou a porta, abriu uma janela para arejar um pouco o quarto. Olharam-se e se beijaram. As palavras não faziam falta.

O meu nome é Jenny

António. Muito prazer. Chamo-me António José Castro Morais mas toda a gente me trata por Tó Zé. Raptaste-me ao terceiro dia: "Jennifer. Diga à sua mãe que hoje está muito cansada para passear e venha comigo ver a vida verdadeira." O meu nome é Jenny, porque o pai que eu não cheguei a conhecer adorava a heroína da Família inglesa do Júlio Dinis, uma família aliás semelhante à nossa no culto discreto da riqueza como prolongamento físico da solidez espiritual. Mas tu, António, preferias outra coisa. Eu restituía-te o nome de origem, nem sequer era capaz de pronunciar esse diminutivo portátil que te fazia de toda a gente, e tu inventavas-me para lá do livro de onde eu tinha saído.

Podia-se viver uma vida só do sabor de uns lábios

Nesses anos em que o amor todo se concentrava na feroz atracção dos corpos, podia-se viver uma vida só do sabor de uns lábios. Eu, pelo menos, vivi.

Esposas e namoradas

Um brinde a nossas esposas e namoradas: que elas nunca se encontrem!

Dinheiro

Há tantas coisas na vida mais importantes que o dinheiro. Mas, custam tanto.

Cada um

Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o demônio.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Fúria de Reis

- Terá, por acaso, pensado no enigma que lhe deixei naquele dia na estalagem?

- Passou pela minha cabeça uma ou duas vezes – Tyrion admitiu. – O rei, o sacerdote, o rico… Quem sobrevive e quem morre? A quem obedecerá o mercenário? E um enigma sem resposta, ou melhor, com muitas respostas. Tudo depende do homem que tem a espada.

- E, no entanto, ele não é ninguém – Varys concluiu. – Não tem uma coroa, nem ouro, nem o favor dos deuses, mas apenas um pedaço de aço afiado.

- Esse pedaço de aço é o poder da vida e da morte.

- Precisamente… E, no entanto, se são realmente os homens de armas que nos governam, por que fingimos que nossos reis têm o poder? Por que um homem forte com uma espada obedeceria a um rei criança como Joffrey, ou a um idiota encharcado em vinho como o pai?

- Porque esses reis crianças e idiotas bêbados podem chamar outros homens fortes, com outras espadas.

- Então são esses outros homens de armas que têm o verdadeiro poder. Ou será que não? (…)

- Pretende responder ao seu maldito enigma, ou quer apenas fazer com que a minha dor de cabeça piore?

Varys sorriu.

- Eis, então. O poder reside onde os homens acreditam que reside. Nem mais, nem menos.

- Então o poder é um truque de mímica?

- Uma sombra na parede – Varys murmurou. – Mas as sombras podem matar. E, muitas vezes, um homem muito pequeno pode lançar uma sombra muito grande.


[R.R.Martin]

domingo, 1 de julho de 2012

Não as quero de volta

Eu constantemente sinto saudade das coisas que perco, mas não as quero de volta. Já doeu uma vez.

Estado agudo de felicidade

É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar. Olhei pra você fixamente por instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão poerfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade.

Grossura de camponesa

E eu queria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.

Livro de receitas para mulheres tristes

Nas tardes de chuva fina e persistente, se o amado estiver longe e o peso invisível de sua ausência for insuportável, colha de sua horta 28 folhas novas de melissa e leve as ao fogo num litro de água, para um chá. Quando a água ferver deixe o vapor molhar a polpa de seus dedos e mexa três vezes com uma colher de pau. Tire do fogo e deixe descansar por dois minutos.
Não ponha açúcar, beba gole a gole de costas para a tarde, numa xícara branca. Se depois de meio litro você não notar certo alívio atrás do esterno, requente o chá e acrescente duas colheres de raspas de rapadura. Se no fim da tarde a agonia persistir, pode ter certeza de que ele não vai voltar. Ou vai voltar outra tarde, e já muito mudado.

[Héctor Abad]

Coração de Tinta

Eu acho que ela se alimenta de letras. Toda a casa dela está atulhada de livros. Ela os prefere à companhia de seres humanos. [Cornelia Funke]

A tristeza é feia e quer casar [Silmara Franco]

Está no dicionário: Tristeza: [Do lat. tristitia.] S.f. 1. Qualidade ou estado de triste. 2. Falta de alegria. 3. Pena, desalento, consterna...