Não empresto livro, não existe quem devolva. A generosidade é uma alucinação. Eu agora compro um novo exemplar e dou de presente. Já apanhei da minha ansiedade. Desisti de cobrar, e ouvir a desculpa mais esfarrapada.
Renunciei a metade da biblioteca alcançando obras a colegas — tamanha a euforia com o que li. Não captei a mecânica da maldição: sempre que passo adiante uma obra, o amigo some e desaparece. A gente falava toda semana, de repente ele muda de paradeiro, telefone, personalidade.
Emprestar um livro é o início do desaparecimento. É o suicídio do Orkut.
Ele ganha o livro, eu perco o amigo. Foi assim com Francisco e Esculpir o tempo, de Tarkovski, com Renato e Gramática expositiva do chão, de Manoel de Barros, e com Paula e Alguma poesia, de Drummond, entre centenas de relações extintas.
E não emprestamos algo de que não gostamos, é de nossa preferência, de nossa estima. Não duvido que seja uma primeira edição, numerada e com autógrafos. Por isso, dói o remorso.
O livro emprestado nunca será lido — é aquele que legaremos para depois porque não há pressa. Compraremos outros durante o período, que assumirão a preferência na fila da cabeceira. É impressionante o quanto boicotamos sua presença. Torturamos de espera e de silêncio. De propósito, para testemunhar a saudade de seu dono. É como o amor não-correspondido de uma conhecida. Sabemos que ela nos ama, mas fingimos que é uma novidade. Fazemos de conta que não reparamos nos sinais.
Talvez o livro emprestado seja a vingança a todas as multas recebidas nas bibliotecas das escolas e da universidade. Uma desforra adolescente ao azedume dos bibliotecários de avental. Um trauma pelos cinco dias obrigatórios de leitura. Pelo bolso de datas na última página. Pela mesada consumida nos atrasos reincidentes.
O pai, por exemplo, colocava carimbo na folha de rosto para garantir a reintegração de posse dos seus latifúndios de papel. Não adiantava nada: o movimento do sem-livro invadia suas estantes e não ressarcia os hectares de ar. Tampouco assinar o nome no verso da capa criava compaixão — apenas aumentava a vontade de não devolver.
Minha crença foi rompida neste mês. Ainda estou me recuperando. Quisera apagar da memória o que aconteceu e continuar desesperançado. É mais complicado ser otimista. Fui autografar Mulher Perdigueira em São Paulo. Na recepção, encontrei Inês. Não lembrei quem era Inês de supetão, fui me lembrando aos poucos, frame a frame, gesto a gesto. Os cabelos cacheados me ampararam — a sorte é que ela não inventou de pôr chapinha. Inês? Inês! Colega da faculdade! Seus olhos de mel puxaram a ferroada. Ela me entregou um envelope pardo. Dentro, Olga, de Fernando Morais.
— Toma, é seu!
— Meu?
— Sim, você me emprestou na cadeira de Jornalismo.
— Está brincando?
— E me disse na época: “Getúlio deportou Olga para a Alemanha nazista, portanto tem a obrigação de trazê-la de volta”.
Mergulhei numa vertigem retrospectiva, numa prévia de coma. Passaram vinte anos que cedi para um trabalho numa atividade de rádio. Ela não esqueceu: pelo contrário, carregou seu peso com a expectativa de me rever. Morou no Rio de Janeiro, em Salvador, casou, descasou, e não se desvencilhou do pacote. Quando viajava, levava junto, aguardando um encontro acidental.
Ela me devolveu — mais do que um volume — o cuidado com a amizade.
Pena que não recordava de quem eu tinha tomado emprestado esse livro.